Com a presciência dos imponderados, o Rogério endereça-me encomenda de registar publicamente a 5ª frase completa da 161ª página do livro mais à mão do servente, e por essa forma, por um instante eternizado na inefável grande ocular cibernética, partilhar da pertença simbólica a uma prestigiosa sub-secção da rede blogosférica de publicistas sem um Hyde Park a jeito.
Devo começar por me desculpar pelo atraso na entrega: tenho sido testado biblicamente na minha paciência para com o meu fornecedor e técnico de material informático, recorrentemente em avaria de há 3 meses para cá, e se é facto que até teria livros à mão para responder num cibercafé (coisa que nunca frequentei), com visionária sensatez, temi que ao sacar de um arcaico instrumento de leitura os cruzados do progresso que me cercavam me tomassem por fervoroso ludita e se me antecipassem à gadanhada nos processadores (eles têm alguma razão...) empalando-me com as suas pen(is - prolegómenos para uma fantasia tecno-sexual)s enquanto as Sugababes, ribombando ainda nos seus Ipods, conferiam uma rigidez maléfica ao impávido sorriso groovy com que a meio dos suplícios não cessavam de me encarar.
Estando agora em casa, e enquanto o computador não se demite de funções novamente (ou seja, amanhã), entrego-me radiante de interactividade à tarefa. Todavia, embora em nada interfira finalisticamente com o meu amestrado cumprimento de qualquer incumbência, devo confessar que o automatismo crescente destas correntes (memes? memes?) me inquieta. Emerge por aqui um debate tecno-ontológico já não tão larvar sobre a desumanização da escrita. Desconsideremos até a rigidez formatada (antes o soneto) desse modelo de interpelação, a requisitar uma ginástica retórica que, para justificar molhar a palavra, dê mínimo ânimo a tão árido pretexto discursivo. A última corrente, sobre os livros que não mudaram a nossa vida, ainda era um exercício rebuscado de distinção social, em que a gestão pessoal do desarranjo dos cânones buscava afirmar, se necessário com a devida displicência, a sua mestria no domínio iconoclasta dos mesmos, mas já enveredava por uma certa negatividade na identificazione di un(a) donna/uomo, não só definido pelo que desconsidera do mundo, mas reforçando o painel limitado do mundo e suas fronteiras estabelecidas nas quais o exercício de rejeição faz a sua selecta, já que, por definição, nada propõe de novo.
Já esta corrente, parece um daqueles alienantes experimentos psicológicos, onde a reflexividade e afirmação de um sujeito são arrumadas num armário em favor da imposição de um reducionismo mecanicista à acção humana. Gente boa, segura nas suas capacidades, encarou-a com a supremacia da sua inteireza retórica, rindo-se da pretensão de a manietar, satirizando-lhe a instrumentalidade, ou instrumentalizando-a para atiçar terceiros. E eu ainda me pergunto desesperado: exercício (nos seus trâmites) liminarmente descritivo, escrever uma frase determinada por um critério arbitrário, pelos céus, para que serve? Na sua incepção, é uma espécie de morte do autor a dois. Assassina-se um autor, extirpado de uma lamela do que quis fazer obra, feita amontoado de parcelas frásicas. Assassina-se um citador, a quem, sem razão contextual, se assaca um perfil da presença de certa obra em dita posição citável na cercania. Como se a blogosfera, concebível reduto de proliferação subjectiva cibernética, se encaminhasse para nos tornar máquinas automáticas de citações absolutamente avulsas. Afasta-se por completo um plano, um finalidade, entrona-se a contingência mas com o desejo inconfessável de lhe peticionar mais significado (porque não construído ou antecipado), espécie de surrealismo auto-vitimizado, exacerbado mas sem assumir a consequência (ou alguém vai andar a fazer um cadáver esquisito disto?). No fundo, tudo isto parece um teste emanado de uma consciência cibernética auto-suficiente a mensurar a vontade de resistência dos sistemas humanos ao imediatismo e funcionalismo (conquanto, ou principalmente, destituído de funcionalidade) comunicacional. Pelo que, sim, a fazer algo desta corrente, há que rebatê-lo como o grande desafio pré-apocalíptico ao emergir das máquinas. Espero portanto continuar a ver-vos à altura das vossas imundas vísceras.
Pronto, maqueada a auto-determinação a reger o meu teclado, levantam-se-me agora problemas operacionais. As duas pequenas pilhas de livros mais próximas, à minha esquerda e direita, tanto quanto a exactidão da minha medida braçal pode calcular, estão perfeitamente equidistantes da minha centralidade da vinciana. E já a encomenda não incluindo medida de sensibilidade política ou primazia de destreza manual, o bom destino encarrega-se de complexificar o dilema. À minha esquerda, o Olhares sobre a História de Lucien Febvre, que desde que comprado há um ano não acredito ler, sem que isso me suscite outras diligências, é desqualificado sumariamente por não ultrapassar as 126 páginas, volumetria de indigência ou honestidade intelectual. A bola passa portanto para a pilha da direita. No entanto, novo obstáculo assoma. O 3º volume de uma recolha da obra poética de Borges lá está repimpado, por razões que não recordo (ainda que seja um caso cimeiro de iminente solicitude), e por indolência que nunca esqueço. Ora, os versos contam? É o verso uma frase? Já digerimos o minimamente o modernismo literário (?) para assumir desabridamente o regabofe da simbólica formal a categorizar o enunciado linguístico/literário? E aqui a máquina começa a fumegar.
Creio portanto que se impõe um plebiscito. Infelizmente, não tenho tempo para esperar pela cristalização institucional de um dispositivo eleitoral minimamente fiável nesta reticular frivolidade. Assim sendo, deixar-vos-ei as duas opções frásicas que se apresentam na pilha da minha direita, uma a heterodoxa borgesiana, outra, e para abardinar a representação parlamentar do hemiciclo da minha secretária, a emanada do livro subsequente da pilha, Les Mots et les Choses de Foucault (que não tenciono igualmente ler any time very very soon), confiando que qual responsável orgão de comunicação social em véspera de eleições, não ireis espreitar a antevisão dos resultados: a convicção bruta ao poder.
Caso ganhe o Sim à desestruturação da estabilidade de distinção sígnica dos ofícios discursivos e sua maximização interpretativa com a consequente vaga de insucesso (se ainda restar sucesso para falhar), ou se calhar hiper-sucesso, nos exames nacionais de português, a frase será «o acceptando la muerte en la mañana».
Caso ganhe o não, a frase será «Or ce enchevêtrement est le résultat d'une série chronologique d'événements». Para vos infligir a frustração que merecem, a coisa trazia à liça Lineu (a única aportuguesação aceitável), Adanson e other taxonomic assorted goodies.
Para perceberem a diferença (mas porque raio ainda está você aí a ler isto?) que faz o maquinismo com um pouquinho mais de purposefulness in action, se fosse recuperar o Naissance de la Clinique que há muito pouco ocupava o lugar micro-topográfico que Les Mots et les Choses ora ocupa, com os fins anódinos que se conhecem, a frase compagnonne de route da de Borges («o acceptando la muerte en la mañana») seria «La mort, peu à peu, dès le premier moment de l'action et dans la première confrontation avec l'extérieur, commence à dessiner son imminence: elle ne s'insinue pas seulement sous la forme de l'accident possible; elle forme avec la vie, ses mouvements et son temps, la trame unique qui tout à la fois la constitue et la détruit.»
Como um bom experimento falseado, diz que é uma espécie de coincidência.
Pela impositividade dos resultados obtidos, lembrei-me que poderia reenviar isto ao Bruno, mas a afinidade referencial no desejar dos avatares a jeito na secretária teria um efeito manifesto de redundância.
Para não desbaratar a presciência acima invocada, fingiria deixar o seguimento à vontade do Vasco Barreto (também "outra vez", mas só porque me dá jeito retórico), para em mais uma hipótese de emancipação humana, se cumprir um fim digno à arbitrariedade da corrente, e sacando efectivamente dos clássicos de poche, se aproveitar para fazer dela um teste à infalibilidade sígnica de cada caganita grafada dos clássicos escribas que nos miram do poleiro privilegiado de là-haut do panteão, ou, se não estiverem à mão (ou melhor, à nádega), pelo menos voluntariar o repouso na citação de best-sellers da sociologia como «The Bell Curve» e os Kinsey Reports, ou da psicologia evolucionista como «The Selfish Gene», que ser guardião da integridade epistémica da desbocada blogosfera, por Toutatis, também cansa, nem há panóptico cibernético que sustente (olhem, mas entretanto vão mas é, a despeito da comédia voluntária e insulto involuntário que é eu brincar aos referrals, reler isto («Porque há uma diferença entre querer dar voz a alguém e pretender calar essa pessoa, diferença que os pavlovianos paladinos da liberdade ignoram»), olhem e já agora isto, e é se não quiserem ler mais, que é como uma apple a day).
Aproveito também a ocasião para ler em público, da única forma que me é possível (vivo trancafiado em casa com a esperança de que me confira uma espécie de perpetuidade criogénica), uma obra que me foi emprestada (em desespero de causa para abalar a minha indiferença de iletrado face a um esparramado manjar de títulos assaz legíveis) com esse preito expositivo em particular, dando-vos a 161ª bla bla bla de um opúsculo versando enciclopedica e assepticamente a intimidade das vidas sexuais desse anátema póstumo que é ser uma celebridade: «Much of Field's boyhood was spent in poverty, and as an adult he was constantly fearful of being broke.»
A vida sexual em questão era de W.C. Fields, e se só na frase seguinte começariam a perceber porquê, azar vosso. As regras são feitas para nos fecundar.