Se os infindáveis folhetos sob o comportamento infra-civilizacional de gente mal-catalogada sem respeito pelas convenções sociais tácitas de se permanecer uma estadia numa sala de cinema (das estadias curtas, prosaicas e sentadas, bem entendido, não no sentido da ética borderline metafísica de rendição fantasmagórica ao passado projectado que lhe chama sua catacumba nostálgica, tipo Adeus Dragon Inn) , já são quase tão reiteradamente cansativos quanto aquela falta de maneiras (o que o torna o genre de post imediatamente ignorável que tem caído que nem ginjas à minha missão bloguística incógnita), é manifestamente porque não temos atentado suficientemente à subtileza simbólica de tais manifestações nem lemos suficientemente Edward T. Hall (no meu caso seria sempre um understatement, mas para sobrecompensar a banalidade temática temos que carregar no index citacional).
A democratização dessa prevaricação, até por dentro das portas do templo Cinemateca, também não ajudava ao discernimento do método comparativo, já que também aí, com a minha presunção missionária, infalível em admoestar prevaricadores com os meus já lendários esgares de reprovação a fazer murchar as bochechas dos meus alvos já que os seus olhos nunca se atrevem a acusar o embaraço petrificante veiculado pelas minhas pupilas de Medusa, não podia criar o distanciamento semiótico requerido.
Felizmente, o campo propício de mais uma sessão muda, mas esta (no bote Luís de Pina) cheia de gente (o que é invulgar, permitindo-me delegar as manifestações bananas de descontentamento, como os fungares muito diligentes, na vizinhança), criou finalmente, para mim, condições de legibilidade do encastramento e estruturação desses comportamentos aparentemente desviantes como formas de comentário simbólico sobre o que se desenrola na tela, e nesse capítulo, apesar da quase uniformidade dos meus campos de recolha de dados, devo dizer que o público da Cinemateca é um terreno etnográfico assinalável.
Indubitavelmente desaprovando as mansas primícias do slapstick sovietizado d'"A Rapariga da Caixa de Chapéus" do Barnet, apesar da sua manifesta eficácia e inventiva visual, as intervenções da audiência não funcionaram senão como um sistema de compensação (falha-me a metáfora mais gira de engenharia) da insuficiente satisfação das expectativas com que haviam entrado na sala, claramente mais interessadas pela precisão hipodérmica no manuseio desse código importado pelo cineasta, que pela prefiguração do seu idioma na idiossincrasia da sua iniciática apropriação de um estilo relativamente formatado.
Ao invés da banalidade dos comentários exasperados, típicos de um espectador ("oh, duh, is this supposed to be funny, duh"), o "espectador" da Cinemateca já está para lá dessa passividade frustrada, e imediatamente pensa e reage como um cineasta. Vai daí, começa a desenrolar-se colectivamente pela audiência uma sequência, certamente irregular, mas esforçada, de motricidade cómica aplicada, iniciada inevitavelmente pela camerata de telemóveis, um clássico francamente pedestre certamente arrastado por neófitos (que eu tentei, debalde, enriquecer contrapontisticamente com a circulação ruidosa de fluido pelas cavidades sinusoidais ou assim - a minha, até hoje inconsciente, indolente secção das orquestras de protesto - apesar de no caso em apreço estar bastante contentado), e a composição também ainda juvenil de jogos de sombra na tela por espectadores a chegarem atrasados (com os estafados sacos de plástico danados para a brincadeira) e a forçarem filas inteiras a erguer-se para lhes dar passagem, mas seguidos por um curioso sketch (sem chegar a gag) de um casal, com a esposa sentada a ver o filme, e o marido entrando de rompante, medindo o filme de alto a baixo e sentenciando "este não é o filme!", trocando mais 30 segundos de recados desinibidos com a respectiva e voltando a mirar a tela a ver se lhe topava um indício de escárnio por lhe ter trocado as voltas ao que teria de lhe ir às fuças, e voltando a desaparecer intempestivamente porta fora, para 5 minutos mais tarde o bom camarada que pica os bilhetes, ao deixar entrar mais uns retardados, se dirigir directamente (isto está tudo bem pensado) à senhora que ainda lá permanecia encalhada dizendo "parece que o seu marido está a chamá-la", a qual, resignada com o fim da sua guest-appearance, trota para fora da sala.
Contudo, mesmo com esta sofisticação interactiva com a matéria fílmica, é manifesto que o domínio ou a consistência do idioma cinemático deste público apresenta inconsistências ou divergências estéticas, já que entusiasmado com o despique das peripécias, alguém não resistiu a saltar etapas e coroar este crescendo desengaiolando uma canora e arrastada bufa, a que toda a demais gente, quase que já em condições de reapreciar um bom humor escatológico tão longe dele se votaram but (hélas) not yet, votou um desaprovador silêncio. Felizmente, por essa altura, Barnet já tinha decidido aumentar o gás da paródia e a risota reconciliou-se com a projecção sem necessidade de mais ad libs.
Podem arremessar os mais acintosos comentários aos consensos mortos da cinefilia hard-core, que não será na tela que já viu estas manifestações exuberantes de dissensão que eles irão colar. Mas um dia, se me passarem atavismos devastadores para a minha sanidade envolvendo ruídos de manjedoura, prometo que vou assistir a uma sessão no Colombo ou assim para tirar teimas.
P.S.-Ontem, no Nimas, dois cavalheiros engravatados e com idade para ter juízo à frente de quem me sentei (can I pick 'hem or can I pick 'hem?), após sonora comoção com a tarefa imperiosa de desligarem os telemóveis, passam o filme inteiro a dar emprego à matraca ("ah, agora é a Mahalia Jackson", profere entusiasmado um, apenas para manifestar o quanto o considera um momento privilegiado para lhe dar acompanhamento comentarístico): claro enunciado pós-macluhaniano de que a massage (e bem estive para lhes amassar o lombo, se não fossem dois e se não bastasse meio) já não carece do medium. Fiquemos atentos, que estes também prometem.