Oh meus amigos, tereis de ter paciência, é que nem se dá o caso de ter ouvido mais que mão-cheia de
discos deste ano, mas se o tio Wyatt até se deu à maçada de editar qualquer coisinha para nos poupar de continuarmos a reiterar a senhores a oferecer-nos camisas-de-forças que o Cuckooland ainda era o melhor disco de 2007 com recurso a uma dissertação construtivista da calendarização ocidental ou uma teoria física relativista do tempo com a palavra quântica lá pelo meio (shoulda spent more time in wikipedia for this one...), com franqueza, parece-me um pouco, digamos, deselegante andarmos aqui a brincar aos tópes
É que, vamos lá, nem é que alguns de vós não tenhais excelentos trunfos no bolso, eu reconheço. Mas por uma mera questão de cortesia para com quem é desconfortavelmente confrontado com a contemporaneidade com um disco do Wyatt, devíamos deixar as outras coisas estou certo que muito louváveis (e várias amostras dizem-me mesmo que sim) que nesta arbitrária grelha temporal saíram, para o melhor do ano que nos dizem ser 2008 (but we don't buy that, do we?), com a suprema vantagem de por essa altura a pobre indústria aproximar os preços um cadinho mais de 1500% do custo de produção e eu poder de facto ouvi-los com um pouquinho de dignidade. E nem é que o disco seja necessariamente uma obra-prima, mas só porque o homem tem a óbvia superioridade e generosidade de estar acima dessas secreções teleológicas e conceptuais (senão nem se podia entregar jocosamente à not so private joke de tocar uma cançãozinha do Eno à guitarra acústica (ah pois), nem brincar com os amigos às orquestras de gamelão). De resto, mesmo sem desconstruir essa coisa das primas, tem logo a abrir a melhor cover do ano (humildade mais profícua não há), a melhor canção de amor de cândido despudor, a melhor canção panfletária, e a melhor canção utopista do ano; e nem sequer é alguma destas a melhor canção do disco. Não vejo propriamente que mais se pode pedir. Portanto, escusais de me estar a desconsiderar com a tarjeta de mecanicista estatutário.
Dá-se, aliás, o facto de o resto dos poucos discos de gente com estatuto prévio (com as devidas décalages gigantescas entre eles, mas enfim) que ouvi não me justificarem o incensar público. O disco dos Radiohead é um tremendo tour de force cultural (em sentido amplo), mas é ao pôr toda a gente a falar da sua estratégia comercial em lugar da raquítica colheita que apresenta, sem sequer terem tido necessidade de recorrer à frase de escape que tinham muito bem dobradinha na carteira pronta a sacar à polícia de costumes "de que é que estavam à espera para música à borla?". Nem é que já nem mostrem resquícios do savoir-faire maníaco desse portento que ainda era o Hail to the Thief, mas a maior parte da matéria-prima é que nem justifica a precisão do escopro (para irmos ao mais longe, "House of cards" é uma pastelice rasa que não esperaria ouvir num disco dos Radiohead depois de 97).
O meu avatar Black Francis achou por bem ressuscitar a sua nominalística sagrada, e mais valia ter estado quietinho, que sob a profana designação Frank Black muito satisfeito eu deglutia a parte (cada vez mais escassa, é certo, mas) de genial menoridade do seu cancioneiro a solo, mas com este sacrilégio de invocar o seu próprio nome em vão (esta mania de os deuses se crerem senhores de si), dá finalmente razão ao epíteto sardónico do Prindle de o bom do Black ser a chubier, dorkier Pixies. Não é que eu não possa vir ao volante a afocinhar numas quantas traseiras automóveis por estar a esgroviar a guedelha ao som do disco. Mas é mesmo só porque I'm weak that way (sempre com a consciência de que posso vir a negar tudo isto).
E embora pareça mal neste seguimento, até os Interpol, que haviam na estreia cometido o prodígio de me titilar as cordas revivalistas, até então e após perfeitamente entorpecidas ao ai Jesus dessa chavalada toda a redescobrir o frisson de uma Fender, e cujo segundo oferecimento ainda era metade muito aceitável, à terceira tentativa produziram uma perfeita estopada, de gravitas de fancaria monocórdica e balofa. A seguir por aqui, mais dois discos e transformam-se nos Keane (se os Keane forem quem eu estou a pensar ter passado por dois segundos num clip na Sic Radical).
Ah não, por acaso agora me lembro para me fazer festinhas à marretada, que, precisamente após um esforço apenas estritamente meio degustável (e logo este após uma obra-primíssima), o meu casal dilecto de mórmons, só eles a me fazerem sentir culpado por fugir dos seus supostos correlegionários em proselitismo de rua, que teve aliás a imensa bondade de vir tocar para mim ao Santiago Alquimista, lançou também este dito ano um bem estimável e bravo disco (ninguém ligou, alimárias), a relembrar que a fazer girar o mundo está não só o vento a soprar nos cabelos da Gena Rowlands, mas a ascensão tremeluzente do vibrato da Mimi (a afagar a angst descalibrada do Alan, não esqueçamos).
E olhem, porque é ano novo, mais vos digo que tanto não me ofereço ao automatismo estatutário e à servidão calendarizada (suck on this, Gregorian) que, verdade seja dita, o homem que mais desamparadamente amei este (dizem que) ano, até ao paroxismo carnal (silenciado da monodia melancólica há 34 anos, e subtraído aos passos deste mundo há 8 anos, ainda se me dá um aperto no coração quando penso nisso), foi o sujeito jeitoso ali de baixo, da rugosa doçura mal-escanhoada que já não há. Se um dia desemperrar as 15 páginas seríssimas e compungidas a clamar pelo mais amável maverick do songwriting americano talvez diga mais qualquer coisa para os unchosen-ones, que não vêem logo ali um irmão e deixam cair quando muito um indiferente "quem é aquele gajo?", que entretanto não quero gente para aí a profaná-lo bafejando uns dignos de pecado mortal "ah sim, isto até é giro" e tal, com a voracidade indiferente do short-attention span. É como digo: isto da internet quase só vos faz mal. Valha-vos eu.