Bom ano para mim
Para quem propugna que a invisibilidade social se conquista, tendo tido o invejável sucesso de apenas ser submetido a um telefonema de aniversário este ano, a coisa poderia soar a uma profecia que se cumpre a si mesma (e que benemeritamente me poupa no saldo de respostas no telemóvel). Mas não é bem isso. Eu bem recebi duas ou três mensagens de bom ano. Mas, intrigantemente, nenhuma das pessoas com quem falei ao telefone nos últimos dias, com conversas de passagem de ano inevitavelmente ao barulho, me desejaram bom ano (nem eu tomei a iniciativa, claro está ó supremo pilar da reactividade). Poderia uma perspectiva confessional descortinar aí a remissão dos votos de bom Ano Novo, por homologia descabelada com a luta contra a dessacralização das festas religiosas, para uma esfera de enunciação privada aos fiéis da causa, à communitas (neste caso profano, naturalmente, communitas de bacantes versus misantropos desmancha-prazeres). Como poderia defender a elisão do ano novo como ocasião de desgoverno hedonista, a exponenciar na proximidade do desfrute uma lamentável descaracterização de uma presumível pureza cultural natalícia. Por uma vez, tenho que dar um passo atrás hermenêutico. Dado o centro de gravitação da amostra (euuuu), só posso imaginar que, nesta altura do campeonato, a estes interlocutores tenha já parecido francamente escusado desperdiçar aí um desejo, o que abre a hipótese de este poder ser um campo discursivo propício a um fascinante exercício prático de waste management da boa-vontade de cartão (o que nada tem a ver com nos querermos bem). E agora venham cá dizer que as pessoas não aprendem nada com a história.