segunda-feira, 10 de dezembro de 2018
segunda-feira, 22 de outubro de 2018
Não é show da Xuxa
É difícil pensar num disco mais urgente em tempos de memória recente, que de discos urgentes, é de desconfiar, se verá cada vez mais amontoada, à medida que degrau a degrau o sentimento de um ocidental se vê cada vez mais alegremente a descer uma ilusória escala de evolução civilizacional e entrando num bizarro world onde o Fukuyama tivesse antes escrito O (Re)início da História. Mas assim como assim, como não haveríamos de crer panglossianamente ser já este o melhor dos mundos possíveis, quando até as juras de ódio figadal inscritas no equilíbrio natural dos ecossistemas se vêem melosamente esquecidas a cada vídeo de adorável cafuné entre chitas e gazelas de thomson, e demais animal frenemies, no tutubas.
Há já alguns apreciáveis anos que a turma da nova vanguarda paulista, dos imparáveis Metá Metá a múltiplos outros projectos individuais e colectivos de geometria variável (aquela dinâmica social esteticamente insaciável que faz uma cena musical), anda a fazer proliferar a (tanto quanto me consta) mais vital e admirável música do Brasil contemporâneo; mas a sua junção geracional com a veterana Elza Soares, sob os auspícios de Guilherme Kastrup, foi um achado tão improvável quanto genial.
Embora lastimavelmente pareça escapar à maioria dos que exercem o métier, a condição de intérprete, implicando a dependência autorística de terceiros para exprimir uma experiência particular do mundo, também alberga, na mesma medida, uma liberdade imensa para a descoberta e expansão subjectivas a partir de ópticas alheias. A mulher do fim do mundo, precisamente nada tendo a perder, compreendeu-o perfeita e quase inauditamente, a contrário de muitos e mais (relativamente...) novos compagnons de route, e ao entregar-se plenamente à excelência da agremiação em torno dela reunida, que não deixou os seus pergaminhos arrevesados em mão alheia, transportou-a para um novo patamar, culminar ímpar (tanto quanto a memória me assiste), de tão serôdio quanto absoluto, de uma longuíssima carreira.
"Dura na queda", como já o Chico Buarque, talvez tão premonitoria quanto retropectivamente, mesmo já em tardia idade, a tinha saudado, Elza foi-se lentamente convertendo, com a prolongada biografia, numa figura particular no panorama artístico brasileiro, tão sacrificial quanto resistente, assumindo as cicatrizes de uma existência socialmente desafiada e, correspondentemente, pessoalmente conturbada. O primeiro disco que deste improvável consórcio resultou incorporava, pois, ao primeiro debitar daquela voz castigada, um carácter simultaneamente elegíaco e feroz, fazendo justiça a esta figura tanto no seu debatido passado quanto na sua ousadia presente em persistentemente confrontar, na sua carne viva, o que desse passado subsiste, na reprodução de vivências socialmente violentadas. Na exacta medida do seu absolutamente surpreendente conseguimento e justeza, seria difícil antecipar que um tal projecto, quase uma espécie de cenotáfio em vida, pudesse borrifar-se para a rigidez do monumento e ter seguimento. Mas teve-o e, com quase já não surpreendente surpresa (fool me once...), com não menos justeza e inteligência para distribuir. Se A mulher do fim do mundo estabeleceu e cronicou perfeitamente o vulto no seu centro, Deus é mulher ocupa-se de tudo o que resta, que é lançá-lo novamente sobre o mundo e a sua regressível imperfeição. Se não fosse Elza, talvez este disco (cujo título, logo com toda a honestidade, não engana ninguém) fosse uma vítima mais fácil de menorizar ideologicamente como ingressando programaticamente no domínio da política identitária (possivelmente não por acaso, a voz por excelência desta vanguarda paulista, Juçara Marçal, nunca se atirou propriamente assim, de cabeça, para estes terrenos), sendo mais difícil relativizar musicalmente a sua burilada acutilância. Contudo, cantada por Elza, cada palavra ganha um peso ontológico particular (no espectro mais lúdico, por exemplo, faz toda a diferença ter uma octogenária a cantar "eu quero dar p'ra você, mas eu não quero dizer, você precisa saber ler", e explicar o bê-a-bá da sedução a toda uma juvenilia (se não mais a uma senioridade viagrada) com as hormonas aos pulos e os neurónios em falência), na assumpção combativa do que tem para dizer a partir de uma experiência viva, não de uma abstracção teórica. É precisamente na medida em que liberta as palavras da rigidez programada de uma lição, dando-lhes a perspectiva de uma vida própria - que reclamam, sim, mas tão legitimamente quanto qualquer outra - que este disco conjuga autoridade moral com autoridade estética, sem as confundir, pela mesmíssima razão, com autoritarismo retórico. É disso que democraticamente se trata ("de falar e de ouvir também"), para lá de qualquer sufrágio, a que nenhum Estado de Direito se resume, conviria cada vez mais lembrar.
Começa a ser quase demasiado desencorajante a perspectiva de acordar e constatar que discos deste calibre ainda ou já não têm o país que merecem. A única boa notícia é que, enquanto não regredirmos todos a hominídeos adoradores de monólitos que resolvem tudo à ossada, a melhor resposta para isso será continuar a fazerem-se mais, e mais, e mais. À falta de a Mónica se começar a dedicar ao agitprop, com a turma da Elza, pelo menos, parece que podemos ainda contar. Benza-a Exú.
Ghosts of Amazónia
ou o homem do fim do mundo (Serras da Desordem, Andrea Tonacci, in tão tardia quanto actual memoriam).
Uma canção com uma pica enorme
We have no more beginnings: the douchebag
A pedra estilhaçou ambos os sobrolhos e o osso ficou lasso,
pois os olhos saltaram para fora e caíram no chão na poeira,
à frente dos pés do próprio. E semelhante a um mergulhador
tombou do carro bem trabalhado e a vida deixou-lhe os ossos.
Então falaste com palavras zombeteiras, ó Pátroclo cavaleiro:
"Mas que agilidade tem este homem! Que facilidade no mergulho!
Na verdade se isto fosse porventura o mar piscoso,
a muitos daria este homem satisfação na demanda de ostras,
mergulhando da nau, por muito encapelado que estivesse o mar!
A agilidade com que ele agora mergulhou do carro para a planície!
Parece que entre os Troianos não faltam bons mergulhadores."
terça-feira, 16 de outubro de 2018
We have no more beginnings: Torture porn
Para que hei-de eu contar agora as mortes
mais os terríveis feitos do Tirano?
E bom será que tudo ordenem deuses
para que venha o mal a ele, aos seus.
Costumava ligar vivos a mortos,
as mãos lhes ajuntando, como as bocas,
abraços de tortura que banhavam
em podridão e pus por quanto tempo.
segunda-feira, 8 de outubro de 2018
We have no more beginnings: Dupond e Dupont
Como vai começar? Rápido espírito
o leva a uma ou outra decisão,
em posições opostas, lhe dá voltas
entre as escolhas várias e possíveis.
Nesta incerteza faz o que melhor
lhe parece no caso. Menesteu chama,
com ele vão Sergesto e Seresto,
lhes ordena que equipem os navios,
sem palavra a ninguém, e que reúnam
os companheiros todos pela praia,
que tenham pronto tudo o necessário,
sem explicar razão de tais medidas.
quarta-feira, 5 de setembro de 2018
Back to the future
De há anos e anos que, disco após disco, mesmo que sob os auspícios das rarefeitas vozes escritas que mais me valeram que falharam na matéria, o trabalho da June Tabor me tem constantemente solicitado aquela forma de respeito tão impecável que parece precludir qualquer forma mais apegada de emoção (a minha dame da folk da velha Albion foi e segue sendo, desde o primeiro instante em que o seu inimitável timbre percutiu o meu tímpano, a Shirley Collins, sobretudo quando dobrado pelo pouco menos inconfundível recato dolente do flute-organ digitado pela irmã Dolly).
Só agora, ao regredir a 1977, se antecipa um tempo em que, em matéria de haver uma pungência por resgatar da austeridade da entrega Taboriana, possa ter de vir a mudar de opinião:
We have no more beginnings: Dr. [not Mr.: Dr.] Spock
Ele não se atemorizará ao ver esta carnificina de há pouco, se na verdade sair ao pai. É preciso treiná-lo como um poldro nas duras regras do pai e igualar à dele a sua natureza.