«Ele há coisas injustas, que as formas de organização da percepção auditiva produzem, e só muito arduamente se pode esperar rebater. Quem produz uma obra verdadeiramente singular (to say the least), sem par estilístico que se lhe veja, dificilmente pode sobreviver nominalmente a essa efeméride, principalmente se se trata de um primeiro álbum.
Os Comus mal sobreviveram do seu inaugural “First Utterance”, delírio pagão de guitarras e outras cordas como lâminas a chiar em ragas acústicas endemoninhadas e percussões obsessivas alimentadas com doses de sangue, suor e outros fluidos orgânicos extirpados em alucinados rituais sonoros, obra por demais radical mesmo para os tempos supostamente radicais de artesania do que por réstia de reconhecimento ainda se chamasse música. E os Comus reagrupados 3 anos após esse desvario ritual não sobreviveram de todo.
Renegado por todos, os próprios autores, a crítica e o público, o segundo álbum que a conveniência comercial da Virgin impulsionou na busca de estranhas sonoridades para um público em busca de algo novo a cada disco, a cada agrupamento, caiu silente nos cadafalsos da memória. Nem nas infindáveis recuperações dos mais diversos géneros associados a essa memória caleidoscópia dos anos 70 em que tudo o que da artesania ou da tecnologia saísse era música a tomar em conta, como se o som fosse recurso inesgotável de estímulos (e se calhar não se enganavam, apesar de a maioria dos resultados não o confirmar, mas as escassas confirmações serem prova eficiente?…) foi este “To Keep From Crying” resgatado, ao contrário de outros discos bem menores de tantas outras obscuras criaturas. A única reedição do seu material de que temos conhecimento (embora já deva haver para aí barrocas reedições japonesas a preço de incrustado de platina) é na recente antologia “Song to Comus” que reúne todo o material editado pela banda, incluindo um posterior single, esse sim, bem embaraçoso, editado a solo pelo seu chefe de fila, Roger Wootton. Sintomático: no livrete reproduzem-se fotos do primeiro disco, do extraordinário maxi-single “Diana” que o acompanhou (a sugerir outros caminhos, porventura ainda mais estimulantes e apurados, que a finíssima artesania do agrupamento poderia ter prosseguido, desacorrentada de uma fixação programática nos revolterares estridentes do horror), fotos da banda, de cartazes e notícias da época, mas do segundo álbum, nem uma imagem. Ponhamos os pontos então nos i’s no que a esta rodela esquecida de vinil diz respeito.
Porventura uma psicologia da audição às vezes dá jeito. Calhou, pelas excentricidades do acaso, que ouvíssemos este “To Keep From Crying” antes de “First Utterance”, e sem vícios comparativos, sem expectativas formatadas, e mesmo posteriormente tendo sido afrontados com a insanidade criativa do primeiro opus, mantemos o que nos ficou daquela primeira audição: o louvor de uma pérola da pop psicadélica contemporânea que merece ser escutada no seu singelo requinte pelos seus próprios termos.
Ou estamos muito implicados em querer reverter juízos históricos, ou os vícios da comparação são efectivamente fatais, mas escapa-nos por completo o opróbrio a que se sujeita ainda hoje esta colecção de canções. Seria talvez daqueles casos em que uma mudança nominal, dos próprios autores, permitisse fazer justiça à especificidade de uma obra. Porque é por demais óbvio que os termos criativos desta produção estão o mais radicalmente afastados do que o universo ameaçador e esgazeado de “First Utterance” materializava em ritualizada chacina sonora. A única proximidade é sugerível pela ligeira aspereza da primeira canção “Down like a shooting star”, e mesmo assim... (mas escute-se o sacadíssimo arreganhar, a espaços a sugerir larvar delírio, nas vozes, na simultaneidade sagaz da linha crescente do baixo e decrescente das vozes num grande refrão em cavalgante cascata – eles ainda sabiam da poda, dedicaram-se foi a outras culturas). Tal como dos arranjos, a única persistência é a do fulgente e ardiloso entrosamento do jogo de vozes agudas entre Roger Wootton e Bobbie Watson (it’s a she), mas aqui mais aplicados ao encanto etéreo do movimento perpétuo, quando antes polifonizavam em paranóia assanhada e inocência corrompida, a agonia e os fervores da carne.
Contudo, precisamente, para quem seja capaz de operar tal segmentação estilística (pensem que são duas bandas diferentes que partilham o nome, se preciso for), a recompensa é fausta, e quase teríamos a ousadia de afirmar que no seu absoluto contraste estético, somos capazes de ouvir os dois álbuns como a sequência de um belíssimo par (ou o verdadeiro “three of a perfect pair”, se contarmos com o dito, extraordinário, maxi-single). Para mais, somos relativamente insuspeitos em matéria de preferências delicodoces, pelo que tem que haver aqui mais substância que eterealidade fofa e vaporzinhos pop (embora tenha sensibilidade pop a rodos, sim) para nos tanger as cordas sensíveis.
Entre as queixas de Wootton na rejeição desta obra, com quebras do alinhamento inicial dos Comus, mudanças de instrumentistas e intenções de suster uma carreira comercial (daí o encosto pop), inclui-se a má produção. Ora, lamentamos discordar, mas para a que tinham, geriram-na como se não precisassem de mais. Se há coisa que ressalta das sonoridades que nos banham é a qualidade pristina dos arranjos, que não são da polidez asséptica, mas contêm desnuda a qualidade maior de definirem um claro espaço de som, de construir uma necessidade intrínseca à manifestação de cada fonte sonora para o efeito estético, configurando em certos fôlegos (os mais líricos) uma matriz de relação quasi-geométrica (“perpetual motion”, pois) na arquitectura do som. Reparem como a luz de cada canção adquire uma ambiência sonora própria, espraiada a partir de esparsas emanações de som, raramente uma delas ganhando desmesura protagonista. Aqui o tanger da guitarra acústica, ali o vaguíssimo devaneio de um vibrafone, acolá o repenicado oboé de Lindsay Cooper (dos Henry Cow), e além discretas percussões inventivas de Hellaby; a bateria aplicada primeiro para destaque tímbrico na textura de uma canção (a par do ribombar, quando requerido, do bem esgalhado baixo) e não somente como indiferenciado metrónomo, tal como o baixo (se mais langoroso, o violoncelo), com voz e rítmica próprias, mais do que pau-de-cabeleira harmónico; e quando muito um sintetizador a dar um chamariz cósmico discreto q.b. (só mais notório precisamente na canção mais fraca, a larga distância, “So long, supernova”), que estas constelações se fazem num sotto voce eficacíssimo de sugestão fulgente (e também por lá cirandou, em sax tenor, Didier Malherbe, dos Gong,). Mérito maior, aliás, na sua larga sugestão de apelos celestes (nos títulos, e nas atmosferas ou arroubos mais líricos), os arranjos das canções mais investidas nessa diáfana espectralidade tendem a gerir cuidadosamente não só a relação entre os sons, mas entre o som e o silêncio, e os espaços entre eles – a edificação da canção, ora bem.
Atente-se que nessa qualidade de aquilatar da densidade relacional do som, não falamos estritamente, ou sequer principalmente, dos interlúdios de pura evocação ambient engendrados pelo gosto de experimentação com a matéria do som de Andy Hellaby (reminiscente já da sua intervenção espectral em “Bitten” e “The Herald” no primeiro álbum). “Touch Down” (as palavras a espraiarem-se numa atmosfera de ecos em rallentando), “Children of the Universe” (a desarmante inicial melopeia estelar, o eficacíssimo crescendo), a extraordinária (provavelmente a melhor canção do álbum) faixa-título, com o seu cristalino enleio a conter e acolher no limite a violência da mágoa como espaço de transtornada doçura, são exemplares de belíssima inventiva melódica, singeleza e sageza comoventes de arranjos, canções feitas de primeira água. As outras, não colhendo da mesma vinha rubra de doçura com o travo de ardor a vogar tão acolhido nos fundos, recrutam as mesmas qualidades sonoras para devolver como delícia pop os inspirados motes da época que, se fecharem os olhos e o juízo austero, destilam a ingenuidade e frescura (as que se imaginam e vivem antes da doce laceração que este não tão inocente disco também faz correr subterrânea) que por virem de quem vêm, quando vêm, não justificam o rebate do cinismo. E se a pop fosse feita da fluidez e admirável desenvoltura melódica como a que marca canções, com apelo pop mas nele não estioladas, como “Figure in your dreams” (os belíssimos serpenteares daquele ahhh refrão), “Perpetual Motion” (contem as espirais melódicas desta em sucessivo desdobramento perfeitamente orgânico – viva a pop inócua), ou o tom de dualidade ambivalente (e desconcertante face ao desbocado título) de “Get yourself a man”, a história da pop seria um pouco diferente. Foi diferente aqui. Para quem não quiser aí demorar o passo, a perda, como sempre, será de quem deixa tolher a fruição pelos constrangimentos da história, ou o imediatismo da exposição. Dêem uma oportunidade a este Comus, da lenda expurgado para etérea e lúdica função (com laivos cósmicos e evocações misturados com la la la’s e palminhas, sim). Até os pagãos se deleitavam entre a inocência e o rasgo de consciência que tende a brotar sob as promessas do aberto céu estrelado.»