quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Burning down the house

Triste que, nos dias em que por lá passei, a excepcional iniciativa da integral das obras para orgão de Messiaen, na Sé de Lisboa, tenha estado quase às moscas (e ao, não é certo, peregrino/hobo (no Fátima nestas paragens) que, uma vez, de passagem, arremessou com souplesse esquissando uma parábola oferendária dois objectos inidentificáveis, mas produzindo sugestivos ruídos aproximados daqueles embrulhos crepitantes de chocolate, para um vaso de flores no altar - e quão caloroso poderia ser que tal divindade adoptasse certos caprichos devotos mais associados aos seus confrades de panteão hindu e se tornasse sensível à satisfação piedosa de um seu sweet tooth?). Ainda assim, tal terá provavelmente contribuído para insuflar ainda mais o meu sentimento de colisão entre a transcendência alternadamente esotérica e tonitruante da música pulsada por aqueles tubos a assomarem-se a Jericó e o formalismo hierático com que se parecem ter recoberto estes espaços religiosos quase museificados, sufocados num apagamento tumular. Não admira que, porventura na excepção de um proselitismo chão a la padre Borga (também sempre o mesmo a apanhar, coitado), boa parte dos ministros da igreja católica (ou lá quem de direito) pareçam ter desbaratado o património musical e instrumental que são provavelmente a sua melhor herança (para os descomprometidos, claro está), o que torna esta associação da Sé à performance da piíssima, mas potencialmente desconfortável à mansa piedade ritualizada dos tempos, obra organística de Messiaen, talvez mais que louvável, corajosa (ainda que sem deixar de rentabilizar a ocasião para evangelizar um pouco de boleia, com comentários do cónego inclusos). É que não me parece mesmo que haja hoje, para lá deste repertório, melhor forma de ressentir, na configuração de indeterminação que seja (e mais fôra) a existência, o encantamento favorecido pelos passos em falso da inquirição cósmica, a promessa, o furor e o terror que instilariam a experiência religiosa do cristianismo primitivo (se me permitem). O Deus que toda a gente anda hoje a inferir na música de Bach seria, bem entendido, quase um Deus demonstrado como hipótese teórica matematicamente sustentada no fio rigoroso do movimento perpétuo na harmonia das esferas, um consolo metafísico racionalista. Mas o de Messiaen é mesmo o Deus sujo de moldar a lama, o dos mistérios incognoscíveis a meças paroxísticas com a carnalidade esfolada, o da revelação e da revolução, da interpelação e afronta. Deus que, sugere o meu desconforto com a convocação directa naquele espaço talhado em naftalina dos mistérios e revelações da fé pelas trompas de um orgão que é provavelmente o dispositivo de belicismo anímico (sua função primeira, pouco duvido) mais devastador que conheço, não será um que a igreja instalada na modernidade queira convocar para privar com apaniguados e curiosos. Não tenho assim tanto interesse e menos calejo no assunto para dizer que é pena ou alívio, mas o lamento revisionista momentâneo de não ter feito carreira de organista, como a forma eventualmente mais benigna de playing God à velha maneira disseminando temor e tremor nos novos tempos, insinua, com o arrepio de bem a candura poder emparelhar com a implacabilidade, o quanto há a dizer sobre fés que (ainda ou já) não têm pejo em trombetear, como esteja o Apocalipse ao virar da esquina, aquilo a que vêm.