quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Diggin' old geezers

Os velhos porcos serão uma categoria nosológica de nostalgia sexual significativa na epidemiologia lúbrica contemporânea, certo. Mas convém, como para outras associações epidemiológicas grosseiras, não confundir a categoria social com as práticas problemáticas a que pode estatisticamente associar-se sem produzir uma reificação causal dessa correlação. O caso dos velhos porcos é particularmente interessante para contestar o fetichismo da correlação, na medida em que é ao partilhar da categoria etária sem ser absorvido pela encenação comportamental da denegação do seu declínio que se pode produzir um olhar mais lúcido sobre os mecanismos operativos do condicionalismo libidinoso. Foi pelo menos isso que, confessadamente, mais me interessou no último Lumet, e de que constantemente me relembrei ao tapar alguns buracos da minha oliveireana pessoal na cinemateca.
Como todo o Portugal tem uma opinião resolutamente autoritária sobre o Oliveira (e que melhor consagração de incontornabilidade cultural?, os parabéns que se fodam), não há-de ser grave que eu meta uma colherada muito direccionada para a presunção de que, tendo o nosso decano cinematográfico sido sempre graficamente (mas não inconsequentemente) maroto (a sério, não sei mesmo de que é que o pessoal se queixa, com sortidos mariolas e tudo (neste tudo condensando-se, para a minha carência de appetizers audiovisuais, a obra indubitavelmente mais espirituosa do cinema português aquém do César Monteiro, ainda que em alguns planos diferentes (piada ou não, é no Oliveira onde vejo assomar tremenda veia burlesca que a gente devida já lhe apontou)) para o entretém), tenho para mim que a exposição explícita (na exacta medida do rigorosíssimo pudor de quem sabe milimetricamente aquilo que quer mostrar) do corrimento dos veios lúbricos da vida só se começa a reverter em movimento interno para o registo da perversão supurativa dos desejos (mal-)contidos, na sua terceira idade de cineasta (sendo que, por alguns dos buracos mais recentes que cobri, na minha periodização subjectiva ele já irá na quarta, onde tais fantasmas internalizados provavelmente terão já passado mais para o banco de trás).
Foi a possibilidade situada desse olhar distanciado de quem esteve implicado no jogo e hoje lhe reconhece de fora a clausura que me surpreendeu no Lumet que, precisamente com os seus oitentas, está exactamente na fresca idade de explorar as possibilidades perceptivas de que tanto o Oliveira fez mister, e que tornam estes cineastas potenciais projectores das mecanicidades comportamentalistas que o cio acolhe como quem respira, e das perversidades perceptivas que engendram. Pareceu-me verdadeiramente emanar de um sítio de observador privilegiado (enfim, a respectiva pode não concordar comigo nisto) a plácida artesania corrosiva de jogar com a frustração perceptiva, a jusante e a montante, daquilo que julgamos ter visto e do que julgamos vir a ver (nomeadamente, mostrando uma lúbrica garina qualquer a levar trancada de quatro (e isto não sou eu a ser porco, é a descrição daquilo que representa e a que corajosamente se entrega) e só depois do acto consumado perceber que era a Marisa Tomei, que assim vimos e não vimos querendo retrospectivamente ver; e, ainda que menos ardiloso, mostrando o Seymour Hoffman a despir-se lentamente por uma casa, de recantos para si familiares, de um efebo requintadamente efeminado de andrajos ergonómicos para a intimidade, para se deitar na cama e acabar aí a levar a trancada por que pagara, nomeadamente, de narcóticos, por via endovenosa, que não outra), fazendo essa frustração reflectir sobre o espectador a consciência da perversidade formatada do seu olhar, e das suas expectativas adquiridas e naturalizadas, sobre que imagens lhe deviam ser dadas a ver, em que ordem, para que tipo de satisfação.
Quando os modos de produção cinematográfica mais desesperadamente se apegam à deception como mero procedimento de materializar artificiosamente uma cenoura por cima das poltronas dos multiplécses, alguém que exponha quanto a deception já está inclusa no pacote domesticado do papel de espectador, e por essa forma o devolva conscientemente (se necessário, envergonhadamente) a essa condição, merece não os parabéns indulgentes da mera morosidade diacrónica, mas os de a fazer cumprir plenamente em todas as suas estações. Ainda que por vias travessas, não conheço melhor elogio a fazer a um centenário.