quarta-feira, 14 de junho de 2006

Nightfall

Apanhei-o um destes dias nas ocasionalmente generosas madrugadas (apenas e só as madrugadas) televisivas, e há, digamos que, um procedimento estilístico (viva o film noir) que muito me apraz na primeira meia-hora ou assim. É que apesar de mais tarde verificarmos, ilustrado de forma quase beatífica, que os "bons" e os "maus" estão perfeitamente delimitados, sem zonas intrínsecas de sombra ontológicas (nada de complexidades psicológicas, portanto), nessa primeira parte, essa identificação não é possível, porque a percepção começa por estar organizada em torno das situações e da acção dos personagens descontextualizadas. Como a entrada no filme é logo com o enjeu de film noir da perseguição e da atribuição da culpa instalado, não há situamento narrativo (nem grande sugestão simbólica) que determine o papel de cada um nesse intrincado (que será progressivamente desvelado precisamente com recurso a flashbacks que sustentarão essa verdade narrativa, até então velada). Assim sendo, na primeira parte, aquilo que é a necessidade de identificação dos personagens vai sendo eludida em função dos equívocos que alimenta o olhar "neutro" da câmara ao seu estar em situação, sem discurso de intenções, sem demonstrações simbólicas. De alguma forma, colocando a clarividência ontológica na dependência contingente da percepção. Ponto de vista que é, na verdade, reforçado exactamente pela unilinearidade moral dos próprios personagens, ancorando a ideia de que mesmo os mais impolutos seres podem ser sempre situacionalmente ajuízados como o seu inverso. A ontologia ou a colocação moral de uma pessoa, antes de qualquer psicologia ou metafísica, é pois evidenciada primeiro que tudo como uma questão estílistica, por assim dizer, cinematograficamente, ou mais generalizadamente, como uma questão de percepção e colocação contingente nas arenas do quotidiano, sempre terreno de lavrar equívocos. Como na cena em cima, em que apesar da aparente transparência visual/simbólica do carácter dos presentes, a "natureza" dos personagens é posta em causa pela situação em que o acaso os junta.
Qualquer coisa como: quem nós somos é onde e como estamos.
Adoro filosofias de como quem não quer a coisa.

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