(Ceci n'est pas une boîte de commentaires 2)
A bola sob as oliveiras
Lembrei-me de um comentário (sim, comentário... é patético, não contem os caracteres) que deixei numa caixa benquista, num tempo em que não me debatia com o corpo à porta de casa aberta. Vem mesmo a calhar (por mais que uma razão, que sensibilizam o dedo para o copy paste), logo, refresque-se-lhe as faces e vire postada.
Aí vai:
Por vezes penso que gostaria de gostar de ver futebol. Mas lembro-me que não deveria. Repressão civilizacional a la Freud? Hardly. Até porque se tornou fashionable (para lá de, curioso, cada vez mais culturalmente fascizóide e obtuso dever nacional). Apenas reconhecimento de que os construtos sociais que conformam os prazeres não são inevitabilidades, e a matéria subjectiva em que se enformam não é inocente e inconsequente. E o desporto institucionalizado e competitivo é (grande novidade) largamente de uma perversidade singular, tão mais declarada quanto discursos de boas intenções cada vez mais enxameiam seus processos de legitimação. Cumpre funções sociais? Talvez. Mas teorias do conflito e válvulas de escape também são uma bela Maria vai com elas, e lá por isso os adeptos bem podiam ir para o mesmo efeito partir pedra para a Arrábida, que diminuía a poluição, e gostavam mais do país, sem o colorir de chauvinismo dependurado à janela (tamanha devoção: recordo uma vizinha com rancor a arrancar o dito cujo ainda a anunciada final malograda do Euro 2004 não tinha terminado).
E claro, construto agora, construto sempre. Mas, fincando pé nos arquétipos e lembrando aquele onde viveria Ulisses, podemos ajuízar melhor do pé na bola com o valor de uma peladinha no caminho para Ítaca, ao ser desafiado pelos Feaces (um arremedo jeitoso de Liga dos Campeões, se dotados da visão insuspeita de Tirésias, para não nivelarmos por baixo):
Euríalo (qual Pauleta qual carapuça): «Não, estrangeiro, a mim não dá impressão de seres um homem conhecedor de contendas atléticas - das que praticam homens.»(...)
Ulisses: «Encolerizaste o coração no meu peito, falando de modo desabridoe sem medires as palavras. Não sou inexperto em contendas atléticas, como tu afirmas; mas entre os melhores me contava, quando podia confiar na minha juventude e nos meus braços. Mas agora domina-me a dor e a desgraça. Sofri muito nas guerras dos homens como nas ondas do mar. Mas mesmo assim, apesar disso, participarei nos vossos jogos. Pois provocaste-me com o teu discurso e feriste-me o coração.»
Boa parte dos viés do reconhecimento (e desqualificação) social pelo desporto estão lá, como cá. E o humano herói não resiste a provar-se (e a dar uma coça nos adversários, ora pois, a esmurrada fotocópia Schwarzengeriana não veio do nada). Mas o seu valor relativo, no dever-ser, a que alguma sensatez que da sombras das oliveiras descai se soube alcandorar (e desgraçadamente o valor absoluto hoje legitima) em tais terras solarengas também lá está. Convenhamos que seria irrazoável irmos todos saquear Tróia (ah pois, não era só simpáticos velhinhos pederastas de túnica a apanhar fresco com um enleante silogismo nos lábios) para aprender a lição (consta que se tornou um pouco inviável). Mas podemos ler o tio Homero. Afinal, até a literatura pode ter funções insuspeitas.