sexta-feira, 29 de dezembro de 2006
Mistaken Identity 2
Escusando, para benefício da minha self-made prophecy eremita, um convite de polidez para a passagem de ano (dada a exposição do meu ensimesmado cenário doméstico para a efeméride), alinhavo o argumento jocoso de circunstância, de que preferia passá-la, como sempre, agarrado à almofada a chorar. A minha amiga não sorri. Retorque meio pressurosa, ma non troppo, como quem reconhece um sintoma num quadro patológico, com um cândido (oposto a céptico), menos interrogativo que reiterativo, «a sério?».
Quando as nossas ficções personalísticas ameaçam substituir-nos o que retemos como a nossa plausibilidade ontológica primeira, nos quadros interactivos, podemos descobrir-nos reféns do que damos corpo como plausível, ou tranquilamente confirmar-nos bem sucedidos produtores identitários. Para os primeiros, desdobra-se a questão de saber se a persona era uma máscara que se tornou demasiado verosímil (tornando-nos os nossos próprios body snatchers), ou a superfície que julgávamos velar e afinal reflecte o que jaz. Para os últimos, pode inquirir-se se, na verdade, seremos realmente reféns da plausibilidade da nossa ficção social, ou antes da própria ontologia que apenas presumimos precedê-la, no resguardo securitário da identidade própria, de ter que presumir saber quem se é.
Poderá configurar indestrinçável charada existir entre espelhos ambulantes e deles se refractar a nossa imagem. Saber se as nossas ficções são menos ou mais constitutivas do que somos, do que a nossa identidade. Saber se será mais real a inexistência de humidez na minha fronha, ou a plausibilidade de o meu travesseiro ser credor do que não aspergi. Portanto, a única questão que restaria, à luz da dicotomia primeira, seria saber se se intende persistir e subsumir-se à presumível personagem, ou se é possível e/ou desejável regressar e ater-se à pressuposição matricial de ser uma pessoa.
Escrevê-lo e não saber, poder, ou querer decidir, será a primeira de todas as irresoluções de ano novo: no fim de contas, o melhor dado ontológico que já me conheci.
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quinta-feira, 28 de dezembro de 2006
Broken stand for a new smile
«As obras são feitas e apreciadas em contexto. Se tal facto é inescapável, ele, contudo, não as aprisiona num quadro fechado de relevância musical: o que faz é multiplicar os critérios e formas de apreensão de uma obra para construir diferentes formas de validade, sendo que, para os sentimentais que reclamem na ressonância subjectiva dos interiores (e só nessa) validades transcendentes, essas são matéria que escapa à sageza da palavra. Smiley Smile, no seu contexto histórico, foi apreendido como o subproduto da obra-prima-suprema-que-o-não-foi, ainda que tenha passado, muito tempo depois, a ser a obra-prima-que-não-foi-mas-deu-a-que-é, o Smile ressuscitado de Brian Wilson, em 2004: distinção importante, pois para quem suspira pela perda do mito escancarado por uma reconstituição que não pode fazer o tempo e o génio voltar para trás esclareçamos: o Smile-que-não-foi, é também o Smile-que-nunca-será – o mito é vosso, e sempiterno. Mas se só a ele se querem agarrar, a perda é vossa. Primeira lição: os mitos são incapacitantes. Foram-no para a obra-prima-que-o-não-foi, abandonada por um Brian Wilson em desespero de causa pelo aquém da sinfonia pop a Deus que as suas mãos não conseguiam, em toda a perfeição da sua inspiração, veicular. E foram-no para o dito subproduto, que em seu lugar apareceu, este menosprezado Smiley Smile, que para substituto de obra suprema não enchia as medidas inapreensíveis do mito (desse ponto de vista, os Smiles das nossas vidas são feitos para não existir). A vantagem do tempo é que asperge de olvido os cérebros e os objectos sobre os quais se debruçam. Vejamos: estamos em 2005, e há reedições catitas dos Beach Boys nas prateleiras. Que tal a juventude inocente destes mitos, ou os ouvidos que dele já conseguiram extirpar exigências feitas para não ser cumpridas, pegarem no “subproduto” e ver o que nos diz a grafonola do dia? Se esses cérebros não conseguirem aperceber-se da maravilha que este subproduto é, não tenho muita esperança no futuro... Ainda para mais que o subproduto é uma maravilha que nem “A” maravilha do Smile ressuscitado deve apagar. Senão vejamos... Há obviamente os fragmentos do Smile-que-não-foi que apareceram no Smiley, e ressurgiram no Smile-que-é: “Good Vibrations”, “Heroes and Villans” (esta reconstruída no Smile-que-é – Dance Margarita! Don’t you know that I love you!), “Vegetables”, “Wind Chimes” e “Wonderful”. Comparações são inaceitáveis, porque há comoções nos limites da voz presente de Brian Wilson que não podem (efeito de contexto) deixar de validar a sua expressão, por contraponto à imaculada vocalização dos Beach Boys. Quando a sua voz cansada ajuda (como os santos) no caminho descendente da melodia “and Sonny down snuff I’m alright by the heroes and villains”, só reclama o renitente aconchego infantil de um beijo na testa. De facto, estamos a falar de diferente música quando falamos das versões que beneficiaram de reconstruções ou, pura e simplesmente, foram re-integradas numa unidade-Smile que lhes confere novo sentido e fluidez. Essa aliás a suprema surpresa do Smile-que-é. É que se o material constituinte estava já largamente disseminado numa infinidade de bootlegs, é a sua conjugação num sentido de Obra que dá corpo ao opíparo e inigualável festim sonoro, e que os fragmentos por si nunca nos poderiam ter feito imaginar. Pensem nesse hiato, no que não conseguimos construir com todas as peças do puzzle nas mãos. Esse hiato foi o precipício em que tombou Wilson, e o génio que o reergueu para esta obra maior. E no entanto, se há quem, ouvindo o Smile-que-é, descarte as geniais (g-e-n-i-a-i-s) versões Smiley de “Wonderful” e de “Wind Chimes”, francamente não sabe de que cores mutantes se pode pintar uma pauta, a transmutá-la em paisagens e sentimentos outros (ouçam em particular as duas versões de “Wind Chimes”: se cada uma não resgata sentimentos arquivados em diferentes partes do vosso cérebro, bem podem empenhar os ouvidos). A também repetida “Vegetables” é convertida em exercício estilístico bem diverso nas duas versões (sendo que a primeira confirma que nem a mascar vegetais o McCartney é capaz de manter o tempo – vá, indulgência, uma pequena irritação de estimação, quem não a tem?... bom, ou várias...). “Good Vibrations”, era a canção levada aos seus limites constitutivos, numa explosão vibrante de cor sonora e inventiva, e é agora uma ode à resistência e adaptação à passagem do tempo, com a voz de Brian a sublinhar o que é do que foi, em fragilidade assumida. E diz-se cepticamente: e o resto do Smiley, não resgatado do Smile-que-não-foi, é para encher! É cansativo repetirmos, mas: não se pode ter “Ouvidos” e descartar, sem mais, o magnífico arranjo fantasmático de “Fall Breaks...”, o groove charrado em derrapagem alucinada de “She’s going bald”, ou, principalmente, a desarmante e delicada “Little Pad” na sua modéstia tremida a soletrar em pura melodia o cantar aquém todos os paraísos almejados (e a sobreviver a demasiado LSD no estúdio), e a simples melodia da solidão esperançada que corporiza o querer, em “With me tonight”, cujo único verso apenas dá o mote para que o dizer de uma melodia nos preencha de sentido além do que pode ser articulado. Sim, é verdade, sobram “Gettin’ Hungry” e “Whistle in”: uma qualquer outra faixa redime-as e deixa troco. É motivo para nos chatearmos? (schhh – aqui para as toupeiras dos mitos perdidos – nem tudo é aquém nos infindos bootlegs – procurem a antiga versão do “Wonderful” em cravo e voz, perdida nos arquivos recônditos do Smile – a essa sim, provavelmente nada faz sombra, porque da beleza em transcendência directamente se decantou).»
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quarta-feira, 27 de dezembro de 2006
Award «Derrida is Alive and Well and Shagging Molly Bloom» cerimony acceptance speech
You'll have to pardon my cockney and my overemotional pussy sobbing.
I am overcome with astonishment, deeply moved, and somewhat aroused below the waist, but that might be Molly doin' her thang, I cannot be sure, being, as I am, devoid of sensitivity downstairs, since she argued, and I quote, it would be a fun neo-reichian research in sexual thermodynamics to inquire the orgasmic power of conflicting bodily temperatures by making my (hers) torrid body shag your (mine) between-the-legs in the form of an icicle, and urged me to stick my aforementioned man-tool in the cooler for a minute or so, which, on account of my snoozing due to something of a drunken stupor, left my sunday-afternoon-crosspuzzle-leisure-substitute to come close to resemble a deep-frozen mini-mini-sausage roll.
(pause and wipe tear from cheek)
First and foremost, I would like to thank Jacques, James, Molly (whom he, James - Leopold, poor beautiful bastard, was already out of the picture, but still enjoys having a pint with me now and then, as in when I'm penniless and grovel at his feet for one in exchange for speaking him up to Molly in the next shagging-fest - let me have for a while, while his is defrosting (apparently the temperature shock is something of a vintage turn-on for her, and bearing in mind her mental voracity always on the verge of a Nelly-Furtado-breakdown, I would urge you to think twice before assaulting a piece of meat on a stick which underwent a deep-freezing preservation process)), and, of course, thank the member (not that) of Casanova's very own one man academy. (If you're pondering going back to the beginning of the sentence to question the fictional-historical-mish-mash(?) reasonability and cohesiveness of this tale, don't.)
(pause to regain a steady pulse)
I am clearly unworthy of this most unctuous (in every possible, lubricant and rewarding sense) award, though, to my credit, I do try, although margerine is Maria's department and Molly is discontent with spurious comparison, and only through the effort to achieve the necessary degree of moistness with mere recourse to oral stimulation (reading out loud, you filthy swine) I came to be eligible to such a rewarding distinction, which, in and of itself, regardless of the brassed off decoration I expect to receive shortly in my mailbox, is one of the most endearing things anyone has ever said to me (lucky Casanova's arse is in the distance of old Albion).
(stop pushing me you fucks, I'm not done yet)
(mildly pain-stricken and frank frown)
Some might find it either ironic, or perhaps akin to poetic justice, that such an award is delivered to my grateful hands for my portrayal of an angry, bitter, lacking in sexual fulfilment, doodler lashing out against forms of blogospheric distinction anchored in plebiscitary masquerades. However, precisely what one might fail to realise is, opposite to the shallow visibility which is the only criteria sustaining distinction anchored in senseless voting mathematics, these distinctions are unique, personal, tailor-made, not transmissible (therefore, not up for grabs of eligibility or detractory comparison of losers, except the prized one), and more substantive than all the mathematical unanimity of the world, for which I wouldn't trade it (while we're at the symbolic realm of reward, of course. Write me a check, and I'll start linking and licking).
If, despite all my candour and rethoric, you fail to see these clear and present truths, you will, of course, be certain of my unreliable and feeble character, shouting at my naked royalty (figuratively speaking: if I were to be naked at eye-sight for you to shout at me, you would already be passed-out in the pavement, trampled underfoot by Robert Plant, don't ask me why): the filthy unsufferable bastard contradicts himself! Well, as huge Walt before me uttered for eternity: Do I contradict myself? Very well, I contradict myself. I am large. (...)
No, that's it: I am large.
(was I supposed to make a point?...)
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It's All True
It's all true: o «Juventude em Marcha» do Pedro Costa tem suscitado tabelas de fascínios, enleios e perplexidades, congregando uma pequena quase "clubite" em afinidade quase epifânica, recolhendo da memória e da afinidade cinematográfica linhagens que pudessem amparar o espanto que se nutre de um objecto com tão fortes ideias de cinema, que se torna árduo recalibrar o olhar para outras formas de pensar o sortilégio, a relação e a mecânica de grafar a imagem e expressão dos sujeitos, do tempo e do espaço. Adorava ler o Bénard sobre o filme. Há ali uma densidade pictórica absurda, que à minha ignorância é familiar mas elusiva. O recorte interno dos planos, como que para dentro, uterino, nas sombras das Fontaínhas, propícias à materialização de imaginários constitutivos, e como que expositor na cegante brancura do Casal da Boba (faz lembrar a assepsia estética das distopias cientistas de certa ficção científica). O expressionismo absurdo de se atingir na gestão estrita dos elementos (as sombras sempre recortadas, como em mansão gótica, de cujo assentamento memorial aliás pacifica e subversivamente comunga, do telhado de zinco sobre o frontispício da barraca de Ventura). O Ventura nos exteriores do cerramento urbano tem um impressionismo figurativista (o fabuloso travelling que se inicia em contra-picado das copas das árvores a desembocar no banco de jardim - a lembrar as árvores do Oliveira), em que, tal como no museu Gulbenkian, não é ele que se inscreve nas paisagens, no espaço da arte, mas o inverso (não, não sei o que isso quer dizer). A presença de Ventura é o que vivifica o sentido dos espaços. Nesse sentido, quando o vigilante o expurga, e seus vestígios, do museu, resulta um comentário profundamente irónico sobre uma concepção da arte (e do próprio cinema, e do próprio filme) que a mumifique e isole dos sujeitos que, na verdade e necessariamente, a presentificam e actualizam. No seu aparente hieratismo pictórico, os filme faz precisamente o inverso: convoca o mundo da vida para produzir a arte. Não é de espantar que se tenha aventado tanta vontade genealógica de enquadrar semelhante objecto, que se apresenta tão monumental na sua proposição estética, na busca de âncoras que revertam para pensar que relação e implicação tem um objecto tão singular face à arte da qual se nutre para exprimir as suas verdades. Ou essa genealogia é possível, ou de alguma forma, a única forma de abraçar tal objecto pareceria um radical manifesto de exclusividade estética. Essa carência genealógica tem abraçado o Ford do Grapes of Wrath e o dos Three Godfathers, o Tourneur de I Walked With a Zombie e Ozu. Como, estranhamente, ainda estou eufórico do visionamento, ainda me está na cabeça o que me lembrou na mnemótica genealógica, e, para aquilatar do grau patológico do entusiasmo, é um filme que tecnicamente não existe.
It's All True, é o nome de um filme fantasma (começa bem, portanto). Ou seria o nome que tomariam os fragmentos de filme que Orson Welles filmou no Brasil que nunca tomaram coerência em película montada, quando o jovem prodígio em desgraça junto dos produtores lhes perdeu a mão (em vários sentidos). E desse filme, alguns fragmentos foram reunidos para outro filme de carácter muito híbrido e, se (não) me lembro (acho que passou uma vez na televisão num programa apresentado pela Maria João Seixas), muito mal-resolvido, meio recuperação, meio recriação, meio comentário, guardando-lhe o nome, onde, no entanto, se guardam publicamente os vestígios espectrais para a imaginação do que poderia ter sido. E o que poderia ter sido guarda uma aura particular. Nesse filme a ser (que se quedou enquanto processo), se começou a desenrolar um enleio de Welles pela vibração enraízada que começa a ressentir na América do Sul, em particular no Brasil, em expedição cinematográfica de encomenda politizada de relações internacionais. E em contexto brasileiro, no episódio mais danado da expedição (o de quatro jangadeiros numa jornada épica de viagem do Nordeste ao Rio), essa vibração começa a ser canalizada pelo propalado fascínio de Welles pela figura de um jangadeiro (que falecerá na reconstituição fílmica da sua jornada), Manuel Olímpio Moura ("Jacaré"), e que se torna como que o pólo congregador de uma apreensão do real ressentido e exprimido naquele situamento. Essa figura, não de um guia ou informante privilegiado do real, mas figura personificada de um fascínio que transporta nos gestos, na densidade corporal, uma narrativa do mundo encarnada numa estória pessoal, será porventura a antevisão da plenitude ontológica que formalmente Ventura encarna na démarche simbiótica que se tornou o cinema do Pedro Costa. E haveria talvez já no filme de Welles, pelo menos a um nível de acometimento cinemático (como se a câmara, o que ela regista, possa levar a melhor sobre o operador) uma vontade de trespassar as fronteiras divisórias das objectividades do real, num gesto de tudo abarcar numa plenitude cinematográfica que amalgamasse as diversas ordens de ficção e realidade que fazem tanto o real como o cinema, das quais ambas participam e são constitutivas (talvez a germinar posteriormente nas reflexões do F For Fake, que ainda não consegui ver). É por isso que, tomado pela genealogização de uma ideia de cinema, quando releio a pergunta "quem é afinal o Ventura?", se fosse obtuso (ah, é verdade, sou) e a presumisse como a identificazione di un uomo cinemático chapa 3, daquele com quem Pedro Costa caminha (Tourneur oblige), a minha resposta poderia ser: é o zombie de Jacaré.
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sábado, 16 de dezembro de 2006
Polinização
que as coincidências (ou não) são um motor produtivo do mundo
Labanta braço se bô grita bô liberdade
Grita povo independanti
Grita povo liberdado
Cinco di Julho sinonimo di liberdadi
Cinco di Julho caminho aberta pa flicidadi
Grita "viva Cabral"
Honra combatentes di nos terra
If you think the world is
a machine with one cog
And that cog is you,
or the things that you do
Then you are not in this world
The world is not you
If you think the world
is a balloon in your head
When it goes bang only
you will be dead'
Cos you are not in this world
The world is not you
If you think the world lies
at the top of your legs
And you only live when you are in bed
Then you are not in this world
The world is your head
If you think the world is
a clutter of existence
Falling through the air
with minimal resistance
You could be right, how would I know?
Colossal youth is showing the way to go
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terça-feira, 12 de dezembro de 2006
Johnny Bénard
Sexta passada, Gulbenkian cheia para assistir ao inefável Johnny Guitar, no já enraízado novo ciclo de cinema programado pelo Bénard da Costa na Fundação, e ao final da projecção, aquela coisa grata, de inesperada, desarmada, generosa e reconhecida (supõe-se), de uma ovação ao filme, e, supõe-se, ao seu programador. É facto que os eventos simbólicos colhem. E é facto que este reconhecimento ao papel fulcral do Bénard na socialização (to say the very least, and sticking to this point) da arte (arte) cinematográfica no país é um momento muito feliz e justo na vida cultural portuguesa (ponto para a Gulbenkian). Isto, principalmente, na especificidade da sua intervenção pública. Haverá muitas Críticas, diversos discursos e âncoras analíticas, com méritos diversos de desvelar ou enriquecer a matéria fílmica que lhes subjaz. Mas há algo no acometimento bénardiano à paixão cinéfila, como que uma pedagogia cúmplice da beleza, que fez toda a diferença na difusão dessa devoção na educação cinéfila de gerações (plural) no espaço público deste país. O cinema sempre foi belo (sempre). O que há (coisa muito mais laboriosa que o que parece), com o Bénard, é mais gente a dar, e a fazer (nhó nhó...), por isso. Assim, duplamente gratos nesta tarde esforçadamente feliz, para lá de rever o Johnny Guitar, concedeu-se-nos o deslumbre de descobrir o Forty Guns do Fuller (wink), num scope estupidificante de glorioso, de travellings líricos e assoberbantes, e de ângulos tortuosos, em corpos estupendos de rugosos e de conjunção (Barbara Stanwick e Barry Sullivan; Gene Barry e a noiva armeira; os irmãos Bonnell entre si), desvelando os escolhos, malogros, e salvados da fatalidade encarnada na "paixão dos fortes" (e alguns fracos - o recanto fugazmente iluminado, sua perdição, daquela beleza dorida que nunca dará à foz, do patético, servil e caladamente "amorado" xerife), cavalgando desconcertantemente, entre a subversão e a concessão, por sobre a retenção ostentiva, quase paródica, de estereótipos flagrantes do género (como li já não sei onde, quase da apropriação televisiva do western, de facto, até na sua concentração espácio-temporal, apesar das suas janelas narrativas para a história do fim do género plasmada à história do fim do mítico modo de vida estadunidense, incluindo o protagonista pistoleiro de Barry Sullivan a auto-designar-se "a freak" - nesse sentido, uma simbólica antecipação do Wild Bunch do Peckinpah, talvez), transtornados pela grandiloquência da mise en scéne (chic, hein?!) (ou cretin...).
É bonita a festa, pá.
(e venho agora de ser abalroado pela Juventude em Marcha, donde, se a tanto este troncho se acometer, mais baboseiras balbuciadas e embasbacadas may follow)
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O génio da esquina
Tinha há pouco, grato, redescoberto a prosa de mui prezado escriba (empreendedor em modo new beginnings), que não sendo o génio de que aqui se trata (não discutindo a sua vocação a tal, claro está), retornou também a surpreender-me como em tempos passados, quando me havia deliciado com um vídeo dos paranormais irmãos Assad a tocar em recital a Tango Suite do Piazzolla (surpreendente por não saber o que era o YouTube, e só vagamente o que era um vídeo).
A surpresa agora prodigalizada (mais epifânica, mesmo sem a surpresa matizada de já saber vagamente o que é o YouTube) - que só agora vi que desapareceu do seu blog, não posso saber porquê, mas agora tenho mesmo que desabafar isto, creio que sem prejuízo ou inconfidência (mas estamos cá para o disclaimer ou assim) - foi outro vídeo (este), de outro guitarrista, que havia surpreendido o nosso escriba dado ao guitarreio, no lógico despreendimento céptico de encontrar uma grande performance guitarrística no anonimato sub-ou-sobre-democrático do oceano YouTube, em que o instrumentista interpreta, a seu passo e arroubo muy gallardos e indiossincraticíssimos(?!), a lacrimejante «Una Limosna Por El Amor de Dios» do grande paraguaio Agustín Barrios Mangoré, rodeado de todo o amadorismo vídeo caseiro do mundo ao acesso de todos os pacóvios com desejo de janela para mais além, de que o YouTube é cada vez mais repositório (esperem, que ainda vai começar a sair dali uma distopia Wharoliana). De facto, como a recomendação rubricava, igualmente impressionado pelo virtuoso, clico a descobrir o nome do cavalheiro (ainda que presumindo o gesto improfícuo, para saber nome de lumpen-guitarrista desvalido). Estupefacto, descubro tratar-se de um dos maiores (provavelmente - adjectivo seguinte oblige) génios desconhecidos da guitarra (dentro do desconhecido generalizado de quase todos), de seu nome Baltazar Benítez.
Permita-se explicação. Bénitez, tendo tocado com Piazzolla, gravou pelos anos 80 um disco afogado de tão abaixo do radar (é vê-lo vendido pelo do it yourself desgraçado da internet, no site do próprio Benítez - fui ver, nem na cornucópia da amazon se descobre...), que é (ou deveria imperativamente ser) um objecto de culto para toda a clique guitarrística, que é (silêncio que se vai tocar o Nuevo Tango) a gravação mais singular e expressiva da obra para guitarra solo de Piazzolla. Para lá das Cinco Piezas para guitarra solo como nunca imagináveis (garantiria que nem pelo próprio Piazzolla), inclui 5 transcrições por Benítez de outras peças de Piazzolla (têm para amostra um muito débil, mas enfim, ficheiro de som, no site, da arrasadora La Muerte Del Ángel), que não têm rival (incluindo colossos como Barrueco e Brouwer - aliás, a interpretação de Bénitez, de tão ensimesmada na sua voz instrumental, não é fiel à sua própria transcrição), de tão surrealmente impressas numa expressividade idiomática que é positivamente um mistério técnico e lírico. Esse disco, de timbres sobrenaturais, técnicas esotéricas, trilos alados, espaços e sonoridades oníricos (que a, fatalmente, estranhíssima atmosfera do estúdio faz ecoar numa espacialidade temerosa, que trespassa toda a rudez da fita), a que apenas acasos da fortuna há anos me deram acesso, é uma das raras gravações de guitarra onde a inteligibilidade técnica de interpretar instrumentalmente uma composição se amalgama num sortilégio indestrinçável.
Busquei o site. Esparso espaço de promoção, verifiquei que gravou (apenas) mais 3 discos, que desconheço em absoluto, tem um DVD dos vídeos caseiros atamancados no YouTube, e desde meados de 1990's que deixou de tocar por motivos médicos.
Não sei o que custa mais, a opacidade de uma manifestação gritante de génio, ou a ignomínia da dissolução sobrevivente na indiferenciação colectiva, sem sequer um mito para vender, mas tão somente a arte a metro.
Não se arrebanha consolo, não: tão somente um violento abrir de olhos, tolhido de impotência e vontade de resgate, a constatar empiricamente que os ilustres desconhecidos, por vezes, podem mesmo ter a grandeza do mundo.
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sexta-feira, 8 de dezembro de 2006
Ordet
Revi-o há tempos num ciclo dedicado ao (e programado por) Alberto Seixas Santos, no cada vez mais deprimente Quarteto (apesar das suas óptimas intenções) , e algumas coisas me surgiram para perceber a renovada devoção ao filme, algo ao arrevesado do que simbolicamente lhe cimenta o renome, e agora deu-me para expurgar duas.
Primeiro, não será tanto questão da crença (na especificidade cristã), quanto da fé. Isto no sentido de que se trata da ausência da graça divina enquanto perda de um sentido material para a fé (que pode representar tanto o seu culminar como a sua negação), da clausura histórica em que a leitura da graça nos destinos do mundo tombou no desencanto realista, e a fé deveio conformada à crença limitada a espaços de não apreensão material da imanência (a crença em Deus realinhando-se pela sua ausência, transmutando a natureza da fé, como que descomprometendo-a). É aos desapossados da fé (ou os presumíveis crentes assim desnudados), nas suas muitas modalidades subjectivas, que o aguilhão dos possíveis da fé fere de comoção, na distância inapelável da fé na crença que os não redime no seu universo sem salvação. Nesse sentido, na radicalização absoluta da ontologia subjectiva da fé (subvertendo o conforto da crença distanciada, enquanto mera representação), pode ser como que um filme de sentido incorporado (literalmente ontologizado): seria a fé de quem o apreende que poderia ditar o sentido da fé que ali perpassa.
Agora se me insinuou: como se fosse não a antítese, mas como um agraciado fratres fílmico da prisão terrena dos corpos no Silêncio do Bergman.
Enfim...
Segundo, e mais coisa e tal, para lá daquele aparente relativismo receptor: para espectadores historicamente avisados, a permanência da devoção à matéria fílmica nunca passa exclusivamente pelo desenlace de uma narrativa (seja com Clouzot a pedir na própria película para os espectadores não desvelarem o final das Diaboliques a espectadores futuros, seja com quem é Keyser-Soze, salvas as devidas quaisquer coisas), por mais extraordinariamente ousada que se apresente. Nesse sentido, para esses visionadores, o signo final sob o qual se inscreveu historicamente o filme, diria que (perdoe-se a dupla heresia), passa a funcionar quase como macguffin, como leitmotif antecipado que abre o campo para a totalidade expressiva deste cinema. É no passo da construção do espaço de possibilidade da suprema ousadia que reside o génio. (talvez, como que radicalizando e polarizando estética e intelectualmente, entre o realismo e a metafísica, o sincretismo que habitava a não pronunciação sobre a ordem do real que colhia toda a ambivalência da crença na feitiçaria em Dia de Coléra...talvez...qualquer coisa por aí..., absolutizando assim também a fé como motor operatório da recepção ontológica, nossa crença, da narrativa)
A prova final? A graça reverte-se no beijo mais possuído e voraz da carne do outro (e quem me dera ter o plano exacto em que o beijo literalmente abocanha, a esconjurar desesperadamente o espectro da perda, a presença da carne matrimonial). Esse é o grande plano que o macguffin oculta. E sem o que ele implica, nada podia (continuar a) ser. Porque não há milagres antecipados.
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quarta-feira, 6 de dezembro de 2006
O anagrama que mereces
Daqueles golpes de asa que cunham simbolicamente a distinção de um bl(og)ue na dissoluta colheita que orna a montra do que uns chamam blogosfera, a arte anagramática de linkagem na Pastoral Portuguesa é um exemplo de primeira água. Suspeitaria, aliás, que receber um link da Pastoral com o seu constitutivo anagrama, como quem recebe um retrato a óleo sem ter pago pela encomenda, poderia devir proporção não insubstantiva das motivações de blogueiros lusófonos em incensar o seu autor, caso a sua artesania escrita não bastasse. Cuide-se, no entanto, para lá do frívolo egotismo de ver os resultados, como quem passa 25 euros para a mão de cartomante de quem se não espera húmus para alimentar a crença mas o ritual minimamente orquestrado que dê pasto para reminiscência em interlúdio spooky de uma ruminante dinner party, que há aí algo de uma muito pia (pois claro) atenção ao outro, rara nessa coisa automatizada de contabilista ressequido que é anexar links à coluna da direita na esperança de um retorno na volta do correio.
Os efeitos dessa generosa personalização, claro, também à primeira vista se plasmam à visão cartomante, com cada feliz visado (e começa a perpassar algo de chosen one) a acusar a certeira recomposição anagramática da sua identidade blogosférica (como que não havendo coincidências, tudo estar escrito desde o início, yada yada yada). Mas também aí, cuidada (enfim, não é preciso procurar muito) atenção às minudências de mundivisão que apascenta a Pastoral, pode justificar que se afigure que ali, como no subreptício império de Trystero, certamente não há coincidências. O que, na abjecção que me calhou em sorte e me tolhe (não obstante o grato toque de distinção - deixem-me iludir-me), despertando o desalento da consciência e o derradeiro afago de presumir que haja, de facto, sentido na pergunta "what does it mean?", é uma forma parvamente verborreica (porque na abjecção é o que resta) de dizer: he "pynched" me good.
(in a little "pynch" back, assinala-se que, mesmo não sendo o caso, para quem quisesse exercer ressabiamentos pelo desvelar ingrato do anagrama que merece - caso agonístico de cuidado com o que se deseja - , acima de tudo, a quem se perde por narcisos negros (e fordianos umbrais, while we're at it) sempre tudo se perdoa)
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sábado, 2 de dezembro de 2006
Circuito fechado
Débil de vontade, deixo-me ser arrastado até ao Jamaica (em Lisboa), essa deliciosa relíquia taxidérmica de fauna e sociabilidades dos eighties. Entre os comoventes grupos de cromos grisalhões (don't look at me) a encontrar no reduto da resoluta constância o espaço de respirar num mundo tormentoso de mudança, certas outras faunas ainda se propagam, que não sendo originárias, nestes terrenos formam um clássico tipológico: por exemplo, o ventosa (chamemos-lhe assim: aceitam-se outras designações).
Dança-se (enfim, the ladies do, eu finjo com um ginger ale estar entornado o suficiente para legitimar com inimputabilidade eventuais tristes figuras, justificadas, na verdade, por falta de espinha dorsal - como seja menear a anca em jeito de espasmo involuntário ao som dos manos Gibbs), e vê-se o ventosa aproximar-se, com toda a corporalidade em denúncia antecipada de intenções, ensaiando as pouco subtis mas variadas formas de insinuação no "espaço pessoal" das suas presas. Estas seguem o protocolo de desencorajamento à incansável campanha bélica da figura: primeiro, estratégias de evitamento (desenhando linhas de fuga pela pista de dança). Seguidamente, olhares desencorajadores, breves, a resguardar o limiar da interacção (a evitar a todo o custo). Finalmente, a frase seca, lançada, terminal, a evitar resposta (não dar troco). A esse ponto, o óbvio leva os vigias a tentarem convencer o cavalheiro a arrumar as malas e seguir viagem (no caso do Jamaica, a figura encarregue é, quem mais?, o potentado das figuras de autoridade, seja no nightclub, seja na casa de família, uma adorável cidadã de terceira idade)
Considera-se o que o move. Qualquer propósito predador é inconsequente na clareza da ineficácia, porque tanto mais fincada quanto mais atentada. O ventosa dificilmente pretenderá uma concretização para lá da reacção directa ao acto. Não há motivação ulterior, não há planificação urdida, não há complexo jogo temporal de intenções. Esgota-se no acto da insinuação, da extracção de uma resposta, na face suficiente da negação. O acto faz-se para o actor se ver agir, e na arena circunscrever o espectro da sua consequência. O ventosa circunscreve-se largamente à coreografia limitada da sua inconsequência. O seu devém o espectro da fatalidade, a reconfirmação do estiolar corpóreo ou relacional.
Daí, a consequência seria até talvez algo inapreensível para os seus meios de ser (pushing the argument). Talvez, quando muito, a figura seja o mimetismo automatizado (no auxílio etílico a afogar o assomo da consciência de si anquilosado) de uma motivação antiga, a única que concebeu frutuosa, a que se atém como bóia de sentido (fill in the biographical redemption blank). Como um náufrago nas dinâmicas relacionais, que, em circuito fechado, simultaneamente sustenta à tona d'água despojos motrizes de ainda ser e agir no mundo, e dinamita nessa mesma acção (pelo seu excesso contraproducente) as reais possibilidades de ela ser consequente para lá do circuito em que opera (perdendo-se no humano remoínho do real continuado, dos guiões não formatados). Um ser comprimido e contido num encaixe tipológico (sedutor, macho, tesudo, whatever), mumificado na ontologia paradoxal do simulacro encarnado. Apenas a mascarada para si de se fazer ser visto, na distanciação (de si a outrém) automatizada, a proteger de abalos os fundamentos do rosto oculto, sem clarear a represa que retém um corpo quando se esvaiu a arena e a luz penetra a confissão de um olhar calado. Mas os termos das coreografias situadas na tessitura do quotidiano são insondáveis. Particularmente quando as máscaras se incrustaram na estrutura da face e identidade.
Só se pode quedar a suspeita negada (quem a confirmará?) que o ventosa é chato como a potassa, mas é capaz de, às vezes, ser, ainda mais que isso, muito triste.
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