domingo, 11 de junho de 2006

(Ceci n'est pas une boîte de commentaires 2)
A bola sob as oliveiras

Lembrei-me de um comentário (sim, comentário... é patético, não contem os caracteres) que deixei numa caixa benquista, num tempo em que não me debatia com o corpo à porta de casa aberta. Vem mesmo a calhar (por mais que uma razão, que sensibilizam o dedo para o copy paste), logo, refresque-se-lhe as faces e vire postada.
Aí vai:

Por vezes penso que gostaria de gostar de ver futebol. Mas lembro-me que não deveria. Repressão civilizacional a la Freud? Hardly. Até porque se tornou fashionable (para lá de, curioso, cada vez mais culturalmente fascizóide e obtuso dever nacional). Apenas reconhecimento de que os construtos sociais que conformam os prazeres não são inevitabilidades, e a matéria subjectiva em que se enformam não é inocente e inconsequente. E o desporto institucionalizado e competitivo é (grande novidade) largamente de uma perversidade singular, tão mais declarada quanto discursos de boas intenções cada vez mais enxameiam seus processos de legitimação. Cumpre funções sociais? Talvez. Mas teorias do conflito e válvulas de escape também são uma bela Maria vai com elas, e lá por isso os adeptos bem podiam ir para o mesmo efeito partir pedra para a Arrábida, que diminuía a poluição, e gostavam mais do país, sem o colorir de chauvinismo dependurado à janela (tamanha devoção: recordo uma vizinha com rancor a arrancar o dito cujo ainda a anunciada final malograda do Euro 2004 não tinha terminado).
E claro, construto agora, construto sempre. Mas, fincando pé nos arquétipos e lembrando aquele onde viveria Ulisses, podemos ajuízar melhor do pé na bola com o valor de uma peladinha no caminho para Ítaca, ao ser desafiado pelos Feaces (um arremedo jeitoso de Liga dos Campeões, se dotados da visão insuspeita de Tirésias, para não nivelarmos por baixo):

Euríalo (qual Pauleta qual carapuça): «Não, estrangeiro, a mim não dá impressão de seres um homem conhecedor de contendas atléticas - das que praticam homens.»(...)
Ulisses: «Encolerizaste o coração no meu peito, falando de modo desabridoe sem medires as palavras. Não sou inexperto em contendas atléticas, como tu afirmas; mas entre os melhores me contava, quando podia confiar na minha juventude e nos meus braços. Mas agora domina-me a dor e a desgraça. Sofri muito nas guerras dos homens como nas ondas do mar. Mas mesmo assim, apesar disso, participarei nos vossos jogos. Pois provocaste-me com o teu discurso e feriste-me o coração.»

Boa parte dos viés do reconhecimento (e desqualificação) social pelo desporto estão lá, como cá. E o humano herói não resiste a provar-se (e a dar uma coça nos adversários, ora pois, a esmurrada fotocópia Schwarzengeriana não veio do nada). Mas o seu valor relativo, no dever-ser, a que alguma sensatez que da sombras das oliveiras descai se soube alcandorar (e desgraçadamente o valor absoluto hoje legitima) em tais terras solarengas também lá está. Convenhamos que seria irrazoável irmos todos saquear Tróia (ah pois, não era só simpáticos velhinhos pederastas de túnica a apanhar fresco com um enleante silogismo nos lábios) para aprender a lição (consta que se tornou um pouco inviável). Mas podemos ler o tio Homero. Afinal, até a literatura pode ter funções insuspeitas.

4 comentários:

Anónimo disse...

cara, mas qual é a sua? vocês está pegando nessa moçada da antiguidade assim dessa maneira? você tem de liberar geral, como eu já disse antes. isso de futebol é coisa de garoto e logo passa - e é légal.

olhe, eu tou lendo você e pensando em aristófanes, naquela bonita passagem em que ele diz isso aí «é de mais! por tudo e por nada, seja grande ou pequeno o motivo, a tudo temos de chamar tirania e conspiração. (...) se alguém, no mercado, pede alhos porros para temperar as suas anchovas, a vendedeira, olhando-o de soslaio, diz-lhe: "alhos porros, hem? queres restabelecer a tirania?"»...

você tá vendo - tem de liberar geral que isso logo logo passa camarada.

Julinho disse...

Ah bichinho, não se faça escroto, não (cê que quis falar na lingua-mãe...), pra isso já basto eu estes dias.
Não precisa esculhambar a declinação classicista. Primeiro, isso foi comentário a um post que juntava Ulisses e futebol, daí a associação que aqui lhe parece forçada. Mas e, porra, porque não? Todo o mundo num puta fuzuê com bola bandeira camisola hino e corações ao alto; todo mundo escrevendo ditirâmbos (poema ao Figo incluso), análises sofisticadérrimas de proto-científica verve, licenças poéticas e absolutos vivenciais por exibição e resultado que nada tem que ver com lógica consistente de mérito ou justiça; e eu não posso sacar Ulisses para assentar a dissociação em contexto e narrativa. Ah, sacanagem. Ou tirania, se prefere. Cultural, mas tirania. Agora falando sério: o jogo dura duas horas sim, mas a insanidade está entranhada nos substratos do quotidiano, e exuberante e inescapável se acomete a toda a vivência social nestes tempos. Tenho o sound-system plantado frente à minha janela me azucrinando faz dias, toda a hora, nada que ver com os jogos, e porque raio eu desinteressado tenho que gramar com a audição dos jogos no espaço privado-privado de minha casa ainda gostava de ver grafado numa tese habermasiana. Ontem, 23:30, duas brancas ainda estripavam alto e bom som o Carlos Paião ao microfone apesar do pobre estar já enterrado (provavelmente para se antecipar às mocinhas). Ontem, pelo menos pela segunda vez nos últimos dias, o Público enchia as 12-doze-12 primeiras-primeiras páginas com futebol. O resto do "mundial real" começa na página dezasseis. Inédito. Ora porra, todo o jornal televisivo tem consagrado um espaço diário ao futebol (não desporto - futebol), o que implica a fabricação de um real diário para ser reportado. Bicho, também terá conspiração, mas curiosamente disso os aficcionados é que são os bons informantes. Agora, tirania cultural, se não é, tem um belo disfarce (com máscara grega a legitimar). Veja-se aliás, que a bandeira que você próprio postou em grande frontispício joga precisamente com esse substrato de "tirânica" agregação nacional - logo... É que o seu jogo "legal" (e não duvido que o seja e longe de mim te querer tirar o barato), é apenas uma gota de água na configuração do jogo com fenómeno social total: e é esse que me pisa os calos. Porque, convenhamos, meu chapa, esse nunca vai passar.
Bom, e eu não tenho estaleca ou perfil para polemista, para mais neses tempos, para mais nesta situação, por isso, salta fora desse sound-system safado, quanto mais não seja porque pra você, no mínimo, teria que ter um trio eléctrico para dignificar a função. Sendo escroto eu (avisei), só relembro para minha estocada polemista, que não será por acaso que tamanha inusitada produção comentarista te assaltou. Mas tem proliferação que é sempre do bem, mesmo nesses dias. Valeu, bicho.

Anónimo disse...

ó meu chapa, valeu mêmo. essa da produção comentarista foi só porque eu achei graça a seus posts e resolvi tirar um sarro, é que eu consigo imaginar esse sound-system aí batendo contra sua janela day in day in. não deve ser nada légal não meu irmão! aceite minha solidariedade fraternal mais sincera.

quanto ao resto isso aqui nem é polémica não meu irmão. tirando o facto de eu gostar do jogo, tô em acordo esmagador com você: isso que tá se passando é uma febre danada de exagerar fundo mêmo. e a comunicação social vai na cachoeira que nem carneirada meu irmão. eu, como vivo de minha dieta cinematográfica, musical e livreira, e como tenho a janela virada aqui pra umas casas virando ruína, vivo bem com essa loucura me passando ao lado.

quanto ao aristófanes, era só pra reinar um pouco - era um safadão eventualmente dos menos talentosos, ainda assim com piada.

fique bem meu irmão, fique bem com seu carlos paião aí vibrando contra caixilharia de suas fenestras - e amanhã que será?, antónio sala? (me desculpe meu chapa - tô outra vez tirando sarro eh eh eh)

abraço

Julinho disse...

Ahh mermão, qué isso. O Aristófanes foi uma bela colação: tem pouca gente que sabe como ele também era mestre na colocação coloquial da filosofia política contemporânea. Curiosamente eu pensava que era poejo em vez de alho-porro, o que obviamente dava toda uma outra simbolizada na coisa, mas me enganei (fui confirmar no Wikiquote)...
Já comparar o Paião ao Sala, aí vou ter que discordar: isso já é sacanagem. Tá precisando ir no baile funk pra arrumar essas ideias. Não tarda vai me falar que o Leo fazia umas cantiguinha engraçada no violão...
Aí, solidariedade fraternal acolhida e mui agradecida, viu
Abração procê