sábado, 5 de agosto de 2006

Crónica possível de um fim do mundo

Mirando os mundos desenhados em emanação dos possíveis no corpo da mexicana, na criança deitada na enxúndia, Holden, com um trago, confirma-os devindos impossíveis. E com moedas mal jogadas, pesarosas, para cima da mesa, na realidade desencantada do amor já só concebível como transacção da carne, sagra nos ecos do túgurio a decisão da marcha sacrificial de declarar com estrondo o estrebuchar do mundo que habitava. Borgnine e Holden sorriem(-se) no microcosmos do afecto calado que os une (particularmente Borgnine a Holden, por quem gritará; por acaso?, sendo aquele que à altura não disfrutava dos prazeres da carne com as prostitutas ao dispôr) na mesma ligação que leva Robert Ryan, traído por Holden, a já só poder opôr-se mortalmente a ele, em perseguição, na outra face da persistência da mesma união (mesmo na sua dissolução: "o que conta não é a promessa mas sim a quem a fazes"). Antes que tal apocalíptico ciclo se feche, the wild bunch acorda silente na acção de levar e assumir a sua condição social moribunda às suas últimas consequências ("why not?"). Os quatro homens tomam o passo de resgatar o companheiro cativo na boca do lobo. Mas aqui não há heróis, há homens ligados por um sistema de honra com suas regras particulares. Uma certa expendability nessas regras tomava lugar, como no abandono do corpo de um companheiro que apenas atrasaria a fuga. Salvar agora outro companheiro, Angel, não é acto bom, é leitmotif ritual para a sagração da morte.

"Angel" (no coincidence) conformava um espaço social em aberto para a existência destes homens, na sua dedicação social a formas colectivas de justiça (como a subsistência da sua comunidade nativa) ameaçadas pela anárquica institucionalização de novas formas de poder como as que made America (as corporações, companhia de caminhos de ferro; governos, exércitos e guerrilhas e pequenos senhores da guerra na crescente institucionalização da guerra pelo território; tudo criando um terreno de luta sem tréguas ou tergiversações pelos seus interesses, lançando condenados contra criminosos, sacrificando populações). Dedicação mais ampla que pudesse subsumir o subentendimento de honra que antes bastava unir dois homens. Robert Ryan, na sua perseguição do antigo companheiro e seu bando, pela traição do elo que os unia, ou pela liberdade da sua pena de prisão (derivada daquela traição) pelo homem plenipotenciário da companhia de caminhos de ferro, expressa o fim da linha para esta existência de agregação individual, na perversão autofágica e instrumental do que unia os homens nela enredados.

Contudo, sendo uma elegia, não se filma plenamente o apocalipse. Que a honra se pudesse converter noutro modo de vida, nos tempos em que a vontade de um homem só já se não basta, era outra história, que Angel prometia (e não protagonizou, mas semeou), e que Robert Ryan e Edmond O'Brien (perseguidor e perseguido (re)unidos na face da morte ritual dos companheiros) deixam por saber como se irá escrever.

Mas aqui se descrevia a morte do western como o conhecíamos, e essa descrição sim, plena, porque incorporava no mesmo gesto estético os dois tempos dessa morte: narrativamente, naquele tempo histórico da América, em que os homens deixam de se conjugar nos termos do seu livre-arbítrio; meta-narrativamente, nas condições sociais do cinema americano a entrar na década de 1970's, com o género fenecido esteticamente às mãos da transformação do seu contexto de recepção e a perda das suas virtualidades metafóricas ou reflexivas. Mas mais simbólico e sincrético ainda, era tudo isso estar inscrito nas rugas de William Holden (facto a que a sua apenas breve passagem fordiana assistia).

Young cantou "It's better to burn out than to fade away". Num certo sentido, Peckinpah filmou-o assim.

Sem comentários: