terça-feira, 17 de janeiro de 2006

«Vozes do outro mundo»

É verdade que existem actrizes e actores bons como o(s) milho(s) (pois há diferentes milhos para diferentes bicos, e desde logo o "Anjo Azul" dificilmente seria tentadora na liofilizada e pré-púbere formatação das starlettes do hoje). Mas a mera aparição transparente nunca fez a atracção por aquilo que representam. Porque representam (onde se forja essa, a devoção maior das novas pessoas que engendram e que outra carne não conhecem ou conheceriam). Representam corpos que não o seu, no seu; conjecturam vozes de seres que os incorporam e tornam outros, maiores num tempo; são soprados pela alma de quem os anteviu amalgamados na carne propícia com a essência de outro ser.
Ora, como já tínhamos referido, dos homens à moda antiga com que passámos o ano novo, Roger Livesey tinha-nos sido gentilmente ofertado em visionamento pelo ciclo «Vozes do Outro Mundo» na casa do senhor Bénard. E não resistimos a reproduzir o belo texto da Cinemateca que enuncia o ciclo, a justificar o outorgar a essa dimensão fulcral daquela amálgama fundadora um papel matricial nessa atracção, irremediavelmente sensória, complexamente urdida, (por vezes) sob a benção dos deuses.
Texto que serve bem de pedra (e sabemos, como Torquil o sabia, que as benditas maldições em pedra se inscrevem) onde talhar a perenidade da memória a encarnar no futuro que pode ser o nunca mais, porque por vezes deve a esperança bastar-se a si mesma, rasgada doçura de impossível.

«(...) são vozes de actores ou de actrizes que nos transportaram a outro mundo (digamos, para simplificar, que ao do cinema) tanto como os corpos de outros ou doutras. Uma voz pode ser o melhor reflexo de um ser humano. O cinema ampliou esse efeito e , com o sonoro, descobriu que certas vozes eram tão fotogénicas como rostos e podiam enfeitiçar-nos tanto como imagens (aliás, imagens são elas também). Como Hemingway dizia de Marlene (obviamente uma das escolhidas), não tivesse ela senão voz e já nos punha a todos de rastos.»

Isto, claro, com um propósito perfeitamente egoísta: depositar a esperança ou urgir para a fazer de pedra (aquela esperança...), que o sr. Bénard e companhia tenham incluído, ou o venham a fazer, o nosso outro homem à moda antiga, Eric Portman, no ciclo.
Não foi obviamente por acaso que os nossos santos "arqueiros" o enquadraram (perfeita intermediação) não só corpo luminosamente telúrico sobre as colinas e sob o céu da velha Albion, mas também só voz e silhueta.



Silhueta que diz bem de esperanças de que somos cativos: à espera dos corpos que as desvelam, retendo a vontade que se quedem um pouco mais na promessa que acalenta o mistério da voz na sombra.

Olhem que este plano era mesmo a chave de ouro...

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