...em que débeis voluntariosos nos acometíamos aos batuques na esperança que regessem o bater do coração.
«Atalhemos caminho: não vimos todos os concertos, e dos que vimos só nos dá ganas de falar de dois: sem supresas, os dois que nos levaram à estrada, nos últimos dois dias do Festival Músicas do Mundo em Sines. Para que, não obstante, não deixemos escapar a espuma dessas noites, vejamos telegraficamente: Marc Ribot & the Young Philadelphians (ahh, young... com colaboradores de Ornette Coleman...ahhh, get it?), dá gosto, sim senhor, ganas de roqueiro que não cabe nessas costuras, e ancas funk a não deixar o free jazz a rédea completamente solta; a voz não dá mais que o mote, ora pois, e os teclados são vintage da lata tocados com o cotovelo. Groovy de forma assaz heterodoxa.
Astrid Hadad, mexicana, mais performer (?) que outra coisa, com música em papel estritamente funcional de pano de fundo para as encenações, vestimentas e vocalizações de Dietrich em esforço de Callas julgando que um bagacito ajudaria. Em disco não nos parece (verbo de precaução) que o barco (que a senhora também envergou) fique à tona, pela esquálida amostra de gestão das pretensas influências musicais que convoca. Em palco funciona para os bem-humorados, dá um stand-up comedy meets Kurt Weill meets Frida Khalo de pacotilha vagamente entertaining, mas com a ameaça do acutilante limada pela cativa comunicabilidade, que não chateia nem ofende. Exemplo de memória débil de um não hablante de espanhol: “me encanta estar en Sines, aqui todo es limpio, el ar es limpio, me imagino que mismo sus políticos séan limpios – aqui a multidão cumpre o papel atribuído de contestação, com apupo bem orquestrado - En México, todo és diferente. Miren: nuestro pasado fue terrible, nuestro presente és caótico. Afortunadamente no tenemos futuro”. Soa familiar?
The Master Musicians of Jajouka featuring Bachir Attar. Lamentamos, mas não estávamos em noite de transcendência, e das muitas maleitas de que somos portadores não fomos curados, pelo que ficamos a duvidar das propaladas virtudes desta agregação tradicional marroquina em registo minimalista-estridente, e com um músico a fazer as vezes de estimulante das hostes, gingando no palco e açoitando as vestes, o que deixa a pergunta etnoignorante no ar: “as bailarinas da dança do ventre ficaram retidas no aeroporto?”. Mais a frio, supomos que se carecesse de mais tempo e conforto para ajuizar das tessituras concatenadas de instrumentos que, no seu minimalismo, não se retêm num uníssono perfeitamente estéril. Mas não estamos em pulgas para o comprovar, não obstante a devoção de Brian Jones.
Kíla, Irlanda, banda de espectáculo, como Astrid Hadad, mas neste caso pelo lado mesmo da música, não da encenação (ainda que o uníssono com o fogo de artifício no castelo tenha calhado bem). Pôr os tradicionais clichés mais fogosos de música irlandesa na misturadora (solos à velocidade da luz nas circunvalações melódicas mais retorcidas do virtuosismo possível dos tradicionais instrumentos), juntar um pouco da electricidade para dar mais estática à populaça (mas sem chegar a borrar a pintura com chuveiros de sintetizadores), um bobo aos saltos como um Peter Gabriel-era-Genesis fora de prazo só com um fato, e, a esse propósito, umas pretensas derivações anunciadas para o rock progressivo, que a servirem algum propósito é tornar a sigla mais vácua. Bom para pôr a malta a gingar na relva. Nas bancadas ameaça o bocejo. Não nos tentou a deixar uns euros para os ouvir em disco (aliás, não os vimos... os tipos da banca de CD’s percebem mesmo da poda!)E, no entanto... no entanto, de nada nos arrependemos, pois que tivemos o Hermeto Pascoal e os KTU. O brasileiro demiurgo dos sons fez mais uma (o que não dá muitas... é de aproveitar quando há) visita à metrópole de outrora, e o reino mudou novamente de geografia. A carreira de Hermeto é algo misteriosa à primeira vista, entre a recorrente sedução de certos meios de jazz internacionais pela “novidade na areia” brasileira, e a quase reclusão nas fontes terrosas dos Brasis recônditos, onde vai, qual alquimista, aumentando o arsenal de produção de som – sim, chamemos-lhes pois instrumentos. Mas deste lado aparentemente mais anedótico não se retirem conclusões de pitoresco sonoro, sem mais. Ainda que a extracção sonora de panóplia inédita faça já parte da dinâmica do show Pascoal, não é o seu grosso, e muito menos se esgota e se fecha nessa dinâmica. Único momento efectivo de seccionamento foi o, não obstante, rico momento de música produzida por tubos de metal de diversas dimensões percutidos maioritariamente em pedra (e vêm-nos, só por um momento, os Gaiteiros de Lisboa à cabeça...humm...).Ritmo e harmonia. Dois em um, a baixo custo. O restante pitoresco, passou por solos em copo de água (a chaleira ficou em casa), e o arsenal de percussões de um dos filhos Pascoal, incluindo trem de cozinha multifunções, arsenal de construção civil, e bonecos de borracha que apitam. Todos, entanto, derramados no fluxo da imparável música de Hermeto, que brota de fonte cuja fluidez só mascara o enrodilhado das suas águas. Em documentário há longo visto, Hermeto dissertava sobre o processo de composição com a metáfora do papai ritmo e da mãe harmonia e a filha melodia, ou outro arranjo familiar qualquer. Facto é que da singela teoria do parentesco musical emana um emaranhado de fluidez cristalina que incorpora como turbilhão tudo o que a sua matriz jazzística pode incorporar, o que às suas raízes brasileiras dá acordo, e o que o puro gosto da invenção pode engendrar.Mas para além do virtuosismo, já dado, da música de Hermeto, é a figura humana que deste concerto também ressalta. À partida, há mais que espaço para todo o agregado Pascoal brilhar. O único pecadilho foi a única vocalista, como se já não bastasse ter que sustentar sozinha os devaneios melódicos de Hermeto, não ter aguentado em afinação alguns dos agudos impossíveis a que o tom de algumas músicas obrigou o seu potencial vocal, que lá chega, mas ainda não controla (problema que no magnífico “Mundo Verde Esperança” lançado em 2003, que ocupou parte do espectáculo, se dissolve pela distribuição do encargo vocal pela força mútua de um coro Pascoal – e se julgam que não há mais adjectivações Pascoais possíveis a aplicar, dizemos que é só por breve vénia à verdade que não dizemos que era Pascoal o “maravilhoso” bacalhau que – inevitável – Hermeto referiu ter adorado comer em Portugal).Já a intervenção solista de Hermeto, fora o copo de água, centra pontuais intervenções nos teclados e na voz (e o homem tem boa voz, vão lá ver!...), e, sejamos precisos, nos urros, nos quais muitas vezes incorpora asserções à multidão que envolve com a sageza do longo cabelo. E nesse arremedo, o que vimos? Vimos um insuspeito repentista brotar do sofisticado músico, improvisando verso sobre a falha do seu teclado (que durou uns bons minutos), para prosseguir arrancando (literalmente...chamem-lhe velho!) o outro jovem teclista do seu lugar (qual há que dar lugar aos mais velhos... ele é que o toma!), e nas breves transições de acordes na improvisação forçada descobrimos, atónitos, revelado à nossa frente, por exemplo, o ADN da música de Jobim. Quando um homem nos coloca isto aos pés como quem não quer a coisa, numa declinação harmónica a entoar qualquer coisa como “meu teclado pifou, isto não é conversa” (só que a rimar...), não há mais questão. Hermeto respira música, ponto, é brasileiro na raiz da sua desenvoltura composicional e improvisativa, que descarna para revestir de novas possibilidades, vírgula, e se tudo isto expressa por formas inauditas é porque já não cabe nos limites dos seus veículos canónicos.Felizes os que o puderam receber: são encontros que não se repetem.
Já os KTU é um daqueles encontros de músicos de pôr água na boca e apreensão no coração pelo que daí possa sair. Prolongamento do projecto Kluster do acordeonista (e a desingação nunca foi tão redutora...) Kimmo Pohjonen, a fazer jorrar lava de vulcões em ilhas de gelo à força de arremedos vocais e do instrumento, e Samuli Kosminen, em samplers, a refractar e ampliar no gelo da sua maquinaria o som bruto de Pohjonen; KTU reúne os dois músicos com membros dos King Crimson, Trey Gunn (guitarra Warr... e quando é que começou a ser preciso adjectivar guitarras com mais que um “eléctrica”?...) e Pat Mastelotto (rythmic devices...) . E desalento nos tomou quando vimos que a notícia que primeiro nos anunciou esta reunião era enganosa ao falar de uma colaboração com os King Crimson, e não só estes seus dois membros. Que faremos agora, com a hipótese de um Pohjonen meets Fripp na cabeça? Consolar-nos com o auto-convencimento que dois absolutistas sonoros não podem coabitar...Kluster era um potentado sonoro em si, na sua agregação telúrica a não abrir espaço para nos inquirirmos sobre o que poderia ser adicionado a algo tão orgânico. Ora, colocaram a questão por nós, e vejamos pois então a coisa dos prismas possíveis.O concerto em si, e é disso que podemos falar (os discos, entre demasiados outros que pudemos adquirir a preços simpáticos no âmbito do festival, estão ainda para audição cuidada), foi, ainda, experiência de som impiedoso, visceral no arrancar das raízes de produzir som, de comunicar primariamente o que nas entranhas se resguarda, e projectá-lo até outras entranhas perturbar. É difícil, no entanto avaliar plenamente o papel dos KTU (e não podiam arranjar designação mais enfezada?) nesse esquema de regurgitação sonora. A fúria que produziram no combo de Robert Fripp certamente que os tornou aptos a produzir uma mid-section atreita a sustentar tais esforços de projecção do som, mas Fripp instala-o geralmente no programático, onde Pohjonen se desloca mais no impulso contingente na acumulação sonora. E, efectivamente, nestes KTU, é ainda a palavra de Kimmo que vocaliza a direcção do som, mas talvez deixando uma maior amálgama com os crimsonianos como uma incógnita quanto aos resultados que poderia tomar.Aparentemente, estes servem mais como acréscimo maquinal às investidas de Pohjonen, conferindo-lhe mais sustentação e dinâmicas marciais. Foi, não obstante, notória uma certa divisão do trabalho, e apesar da centralidade de Pohjonen, claramente se pôde observar, a espaços, o dedo dos dois novos parceiros, em momentos de maior estruturação musical e harmónica, ou pelo menos, em momentos onde ela não é submergida nas projecções de Pohjonen das suas possibilidades de expurgar puro som há demasiado tempo e terra contido.Quanto aos KTU, fica a sensação de que Mastelotto ficou algo diminuído, conquanto sempre eficaz e implacável, na sustentação de apelos primais, avessos à complexificação rítmica que havia atingido paroxismos raros nas métricas de Fripp (estamos a pensar no disco “The Construktion of Light”), e já Gunn nos pareceu mais desenvolto com a sua guitarra faz-tudo (ele é baixo, ele é guitarra-arremedo-frippiano, ele é tapping para tudo...) do que nos Crimson, onde provavelmente a especialização do trabalho deixa menos espaço para tal expansão instrumental. Gunn pode pois ter alguns possíveis ganhos expressivos a fazer nestes empreendimentos. Parece que há um disco KTU por aí. Fica a possibilidade de explorar estas questões a quem o encontre.Não obstante, fora de outros contextos que não este concerto, não há questão quanto ao entrosamento sonoro destes torpedeiros, e à sua eficácia no prolongamento de experiências sonoras inéditas que, nesta versão, talvez ganhem em comunicabilidade (graças à maior estruturação rítmica, que não chega a cortar, e talvez a espaços amplie, as margens de expansão sonora de Pohjonen) o que talvez se perca em pura e crua radicalidade. Um projecto ainda singular, e de impacto avassalador em concerto. Com este ganhámos, não a noite, mas muitas noites, nas quais ficará ainda a ecoar, apelo de rasgada inquietação.
Ainda que não tenhamos propriamente acompanhado o festival, assinale-se uns poucos, pequenos, pormenores gerais de monta: a banca de CD’s, aparentemente a cargo da VGM, cumpriu com a apresentação de uma diversa mostra de world music (seja lá o que isso for) e a preços simpáticos (não sabemos se são preços de festival... não nos julguem a receber benesses de publicidade), o que é mais que de louvar (ainda que os jantares, ou a sua ausência, da semana seguinte não concordem). Excelente ideia a distribuição com os bilhetes de um CD com amostras de cada participante no festival, a fazer a melhor montra com aquilo que conta: a música a ouvir. E francamente, um festival que na erva que dispõe no chão, para conforto dos mais entusiastas ou os atrasados que não apanharam lugar nas bancadas, entremeia a fresca verdura com o perfume de uns quantos talos de hortelã-da-ribeira (ou será poejo?), só pode merecer toda a nossa simpatia e eventual indulgência, se necessário for. Quanto a outras razões, pelo que nos toca, a solução de deslocalizar alguns concertos para zonas abertas da cidade é a melhor forma de manter o Castelo como referencial central do Festival que, como qualquer sala de concertos, tem os seus limites, e isso dificilmente pode ser evitado, sem perda de qualidade e especificidade. Ah, e se têm estaleca, não se plantem nas bancadas: o vaivém de pessoas é francamente perturbador: neste caso, para quem pode, e dadas as dimensões acolhedoras do espaço, o esplendor é capaz de ser mesmo na relva. »