terça-feira, 29 de novembro de 2005

Well, have you, punk?...





...have you got what it takes? 

















 «No afã de classificar as nossas audições, que é outra forma perversa de nos classificar a nós (o problema é que nós também tendemos a enfiar o barrete), surgiu recentemente uma categoria que reza qualquer coisa como new weird america, que seria um repegar meio freak de tradições sonoras folk americanas mais ou menos no mesmo terreno que já havia repegado a americana também há muito poucos anos, mas um pouco menos reconhecivelmente (que é como quem diz, uns fumam charros, outros emulam portadores inspirados de cirroses). 
Ora, foramos nós a lembrar-nos e a ter poder de difusão da coisa, e aqueles ficariam antes qualquer coisa como a new orthodox freak america, porque a new weird america ficava para senhores a fazerem coisas como um tal David Thomas. Este senhor, pouco new na idade, cujas qualidades corporais me isentarei de identificar para não o estigmatizar (e porque ele se está nas tintas para elas, logo, nós também), é já de si bastantemente reconhecível como a voz meio demencial entre o delirantemente lúcido e o babado infantilizado que reconhece diáfanas verdades que escapam aos sabidos do mundo (e como tal são desprovidas de valor pragmático) que encabeçava o torpedo new wave (donde o new weird se justificaria) intitulado Pere Ubu. 
Entre os opus a solo que foi lançando de forma assaz invisível desponta, em finais de 90, este “Bay City”, que se não é weird bem ofendem o homem porque bem se esforçou. Se a straight rock descarnado “Clouds of you” que inaugura o álbum ainda engana, a faixa a seguir, “White Room”, espécie de arremedo tosco de balada trôpega de guitarra quebrada na ressaca de meia-noite que não deixamos instalar-se porque ainda faltam 6 horas de ebriedade para a madrugada, embalada a clarinete demasiado alto na mistura com melodia decantada aos soluços, instala a dúvida. A partir daí não há dúvida: quando o senhor diz que “nobody lives on the moon”, no fundo confessa que é lá que habita, e que a lua são paisagens incógnitas onde nenhum americano não lá nado pode respirar ou conhecer senão por estranhos intermediários. Eis o estranho intermediário. Por intermédio de crua, básica, mas bizarra instrumentação, para weird efeito, disponibilizada pelos “estrangeiros” que Thomas desencantou encalhados num fiorde como bando de mariachis, canções que não existem surgem demasiado reais na sua fantasmagórica proposição apenas para anunciar a estranheza distante e irredutível. Ficamos a saber que isto, o que quer que seja, existe, mas não é passível de ser conhecido. Ritmos obsessivos, ritmos requebrados, melodias fragmentadas, não-épicos em ocaso sonoro, não-ritmos, balbuciares e copos quebrados, portas a abrirem apenas para bater, e os passos de ninguém que se anunciam para se evolarem do chão. 
Se “Charlotte” nos dá um seio (só um...) para afugentar as incertezas desta música (ou uma varejeira do deserto, não é certo...), logo nos jogam num quarto sebento de motel abandonado sem fímbria de luz para desviar a atenção das perguntas obsessivas que não nos queríamos colocar. E ecoam profecias, senhores, profecias, conjuradas para temermos nova incursão nas terras de outrém-ninguém: se não se inquietam ao som de uma voz de texano louco, desdentado e visionário, que anuncia às criancinhas, nas cadências nonsense métricas e mutantes da brilhante “15 seconds”, que “You'd better close your eyes because in this world/the good things is gonna sink while the bad things rise./Y'all better close yr eyes.”, algo de errado se passa com o vosso sistema nervoso. E após o cataclismo, no resfolegar dos despojos inúteis que chiam, traduz o olhar do homem serenamente louco (porque nada mais se pode ser) na perdição no vazio escaldado: “i fear the worst that worst could be... that everything would be just the way it seems... to be”. 
Este álbum é matéria sonora feita terra para dizer que isto existe mas não se alcança, não se entende, é a geografia dos presentes, dos que “got what it takes”, e não há viagem para lá: só os rumores remotos indutores de miragens por um vento malsão.»

sábado, 26 de novembro de 2005

O Realismo Leviano

O artigo de Vasco Pulido Valente no Público de sexta-feira sobre a não-ordenação de homossexuais não é propriamente exemplo do que atrás se discutia, porque me parece que o tipo de argumentação, que pode validar, de facto, proposições institucionais homofóbicas (ainda que de uma «entidade privada»), deriva mais de uma lógica analítica que caracteriza o autor, do que de uma qualquer motivação homofóbica. E motivações, não convém julgá-las ou apontá-las levianamente. Mas convém ver que possibilidades discursivas se instalam em certos argumentos. E estes interessaram-nos particularmente, porque é neste tipo de retórica realista que muitas vezes intencionalidades homofóbicas se fazem por escudar (mais uma vez, não dizemos que seja, aqui, intencionalmente o caso).

O que move VPV não é a defesa nem a condenação da decisão de Ratzinger. É o insensato da contestação “politicamente correcta” dessa decisão, face à realidade social a que se refere, relativamente à qual essa contestação estaria muito equivocada (e, conceda-se, até pode estar). Argumenta que a proibição da ordenação de padres homossexuais é apenas uma consequência lógica (ou, mais equivocadamente, «reiteração») da doutrina católica sobre a matéria; que a Igreja Católica é uma «entidade privada», como tal liberta para exercer as suas próprias regulamentações internas, como , "quem entra"; e, num tocante momento de compreensão weberiana, pergunta-se «que homossexual precisa de uma igreja que o condena e humilha?».

Quanto a estes argumentos concretos, vejamos: essa proibição não decorre linearmente da doutrina católica, dada a manutenção da castidade e celibato como condição para o exercício do sacerdócio, e dado o facto de lhe ser normativamente inédita. Como tal, essa proibição decorre de uma extensão institucional de uma concepção epistémica e ontologizante, de facto condenatória, da homossexualidade, para um campo onde até agora não se tinha manifestado, por razões precisamente de doutrina, mas provavelmente também práticas (e daí, ao contrário do que acha VPV, a questão da pedofilia, também não é, de todo, de descartar como absurda nesta decisão, já que a Igreja também sabe qualquer coisa de relações públicas: as temporalidades não são só feitas de acaso, e as condições representacionais de associação entre pedofilia e homossexualidade estão aí mais que visíveis e disponíveis, por inválidas que normativamente se diga que sejam).
Tal implica que, mesmo sendo a Igreja Católica uma entidade privada, e com um estatuto complexo de relação com a constituição política dos estados onde se insere, no mínimo, não decorre daí que deva ser imune à crítica social, seja ela qual for, nas suas temáticas e fontes de enunciação, quanto mais não seja porque é fonte de proposições culturais que afectam a construcção de imagens e representações que, neste caso, no mínimo, a quem se define/é definido, como homossexual, dizem directamente respeito. O facto de se dever diferenciar juízos de facto e de valor, em linguagem científica, nunca implicou o esvaziar da possibilidade de enquanto cidadãos os indivíduos exprimirem juízos de valor sobre o real. Estivéssemos a falar de etnocentrismo, e a conversa realista seria exactamente a inversa.
Quanto a uns certamente masoquistas homossexuais que, vá-se lá perceber, querem pertencer a uma instituição que os estigmatiza, creio que, para um cientista social como VPV, não será difícil perceber que não é só Deus who moves in mysterious ways. Tal como relativamente às mulheres, esta restrição do sacerdócio implica um problema teológico para indivíduos que se reconhecem numa fé (processo que pelas próprias dinâmicas de socialização pode não ter tanto de escolha quanto isso, anulando “eticamente”, face à instituição, o argumento relativamente aos descontentes: «eles se arranjem»), e se vêem impedidos de certas formas de exercício da mesma, principalmente se é teologicamente disputável (internamente aos próprios exegetas oficiais) a base doutrinária para tal. Como entidade privada, e como tal terrena, a Igreja também deve ser considerada como legítimo campo de contestação das suas práticas e doutrinas, ainda que daí não se derivem, ou seja legítimo derivar, outras consequências (como políticas e jurídicas: isso é outra conversa).

Daí o perigo deste tipo de análise pretensamente realista. Aquilo que VPV está essencialmente a contestar não é a natureza dos argumentos anti-discriminatórios avançados, mas o próprio acto de protestar contra o que, na sua análise, é assunto apenas da Igreja (que fica reduzida à sua hierarquia institucional – os fiéis não são tidos nem achados). No desencanto desértico que o tomou, VPV restringe o discurso social válido a um realismo truncado que estiola qualquer margem de crítica face ao que é, assumindo assim uma postura valorativa face à crítica, legitimando a sua postura com base em aparentes juízos de facto. Ora, por muito que se queira desconstruir os termos de uma contestação (e não me parece que tal fosse, nesta argumentação, conseguido), desconstruir a possibilidade dessa contestação é um passo que me parece que se vai tomando, e que conhece abismos pouco aconselháveis. É que também o realismo não se deve exercer levianamente.

Someone else needs to get out of the closet

As polémicas sobre homossexualidade espoletadas por acontecimentos que assaltam o espaço público tomaram um cariz cíclico. Não estava para me chatear com este último ciclo, mas apercebi-me de um facto preocupante.
Tornou-se comum as posições assumida ou implicitamente conservadoras face ao carácter público da vivência social da homossexualidade (desde o plano cultural ao jurídico) tomarem como argumento central das suas contestações às pretensões anti-discriminatórias relativas a tais temáticas, o queixarem-se de que, hoje em dia, com o “politicamente correcto” a permear e vigiar todas as margens do discurso, já não é possível fazer um crítica honesta e descomprometida a qualquer acção ou proposição emanada do universo (seja lá o que isso for) da homossexualidade, sem que tal crítica não seja vilmente censurada pelas boas consciências desse novo e terrível normativo discursivo, que, consta, rezaria qualquer coisa como "nas bichas não se toca" (também não sei lá porque razões: pode ser por medo de outras coisas).
Ora, tendo lido o artigo do Miguel Sousa Tavares, sobre o “caso” de Gaia (ou o “caso” do “caso”, para ser exaustivo), e posteriormente auscultando os vários comentários e reacções que se ouviram por essa blogosfera (e outras esferas) fora, tudo por gente que obviamente até tem muitos amigos homossexuais, tive pôr a mão na consciência libertina (cerceando-a) e reconhecer: eles têm razão.
Meus caros, culturalmente, a luta contra a discriminação pela orientação sexual dos indivíduos deu alguns (alguns) (em parte formais, em parte informais) frutos para uma vivência mais igualitária dos cidadãos de algumas sociedades democráticas. Mas temos que reconhecer, neste ponto do caminho, que essas conquistas tiveram os seus efeitos perversos (não é jogo de palavras…). Que novas opressões se erigiram com estas pretensões emancipatórias, fazendo vingar as suas dimensões particularistas, e não a igualdade cidadã que supostamente reclamam. Sim, é verdade, meus concidadãos, sob a capa mentirosa da não-discriminação uma nova e mais ignóbil discriminação foi erigida, insidiosa: a discriminação dos homófobos(?).
Reparem como as argumentações, neste caso, para criticar a contestação que se fez da suposta discriminação implícita no “caso” (do “caso”), regra geral, têm que se rodear de toda uma série de cautelas, explícitas ou implícitas. Têm que afirmar que fizeram um soul-searching aprofundado para concluírem que não os tinge sentimento homofóbico, e como tal podem pronunciar-se de forma puramente intelectual sobre o caso em questão; ou têm que lançar uma proposição de simpatia face aos, lá aos coisos, os outros, os homo; ou têm que escudar a sua argumentação não na afirmação de valores (pois não se pode “ser contra” os pobres homossexuais), mas no exercício de lógica, política, social e/ou jurídica.
Através desta lógica de argumentação, o que se verifica é que os homófobos da nossa praça estão a sofrer agruras retóricas insuportáveis, para poderem defender subtilmente a sua justa causa. Mais ou menos como os nossos artistas anti-fascistas enganavam o lápis-azul, certamente. O que é pior, porque torna a coisa patética, é que they’re not fooling anyone, e gastam nessa operação truncada o capital de seriedade intelectual que podem aplicar produtivamente em outros assuntos em que não tenham que negar o sentimento que não ousa dizer o seu nome (ahhh... senão para o negar, claro).
Por isso, pequena (ou grande, parece) massa de gente afinal pseudo-emancipatória, apelo ao vosso sentido civilizacional: deixem-nos sair do armário, e ser assumidos homófobos livremente e em paz.
Não é vida decente ter que esconder nas saias da retórica tão sofrido segredo por toda uma existência.

quarta-feira, 23 de novembro de 2005

Suster, tão somente, a persistência animal da carne fraca e esvaziada...desvalida. tão somente. animal. Derradeiro reduto.

«A minha tristeza não é feita de angústias
A minha tristeza não é feita de angústias
A minha surpresa
A minha surpresa é só feita de fatos
De sangue nos olhos e lama nos sapatos
Minha fortaleza
Minha fortaleza é de um silêncio infame
Bastando a si mesma, retendo o derrame
A minha represa »

How the West was(n't) won

«Confessemos: isto não é bem recensão de um concerto. Este concerto é mais um leitmotif para expressarmos uma ou duas ressonâncias sensoriais e reflexivas sobre música contemporânea, do que propriamente matéria sobre a qual possamos permitir-nos opinar de forma particularmente informada sobre o seu conseguimento estético, quer das obras, quer interpretativo, até porque algumas das obras, para lá da exigência colocada à sua apreensão mais organizada, são primeira audição absoluta ou em Portugal. Nada de veleidades, portanto. Mas, efectivamente, não resistimos a tomá-lo como possível ilustração de algumas dinâmicas estéticas e sociológicas (porque o estético, infelizmente?, nunca se bastou) que atravessam a produção de alguma do que possamos designar como música erudita contemporânea (e logo as designações nos dizem bastante sobre a problemática condição da produção musical, em diversos planos), tal como não resistimos a reproduzir alguma leiga ressonância sensorial ao que se ouviu, já que também é para ela existir e ter voz que a entrada em concertos de tal natureza não é barrada aos não peritos da coisa.
Composto de obras de compositores orientais ou de obras de compositores aí não nados inspiradas por elementos de culturas asiáticas, o programa tinha a virtude de combinar alguma diversidade estética, embora talvez sensorialmente menor do que à partida se poderia crer, o que de alguma forma talvez possa indicar que o forte impulso teórico que assiste a boa parte da produção musical contemporânea possa gerar certos efeitos de diluição das diferenciais linguagens às quais compositores em diversos contextos musicais/culturais possam acorrer para diferenciar as suas aproximações à produção musical. De Takemitsu, por exemplo, fica-nos essencialmente a emanação de um certo impressionismo, que efectivamente caracterizou parte das suas inclinações estéticas. Ainda que não implicando juízos quanto à eventual diferencialidade na estrutura das obras dessa influência orientalista, seria curioso comparar o efectivo “orientalismo” que a diversos níveis pudesse ou não pautar a especificidade dos compositores integrados neste festival: se se verificasse haver uma “troca” de influências entre compositores ocidentais e orientais, com cada lado a ser mais papista que o papa (perdoe-se o etnocentrismo) que acorda com o sol no outro lado, as ciências sociais teriam um dia profícuo. De qualquer forma, conseguir ultrapassar a obtusa fixação num exotismo estéril também é parte do cuidado que deve compreender um evento desta natureza.
Dessa diversidade resulta igualmente uma característica curiosa, ligada à própria natureza do projecto que agregou uma diversidade de instrumentistas nesta Orchestrutopica. Sendo um projecto dedicado à divulgação de novas músicas no plano erudito de produção, é ilustrativo de algumas dinâmicas sociais que condicionam a produção musical contemporânea, quando se poderia julgar estar no tempo da maior liberdade expressiva possível, onde, de produção neoclássica a música concreta, tudo pode caber nas larguíssimas costas da música contemporânea (embora com diferenciações e hierarquias, explícitas ou como quem não quer a coisa, e suas devidas traduções institucionais). É que o carácter desafiador e não-convencional de parte da produção contemporânea se encontra em dialéctica com a submissão a formas de veicular a sua audição a algum público. Tal produção encontra-se, pois, algo condicionada a compor para agrupamentos, e suas especificidades instrumentais, à partida constituídos e vocacionados para veicular novas formas de expressão musical. A liberdade e a invenção teórica (que, considerandos os não poucos efeitos de escola, também poderia ser questionada) encontram-se pois condicionadas pelas especificidades das possibilidades sociais de comunicação da música produzida.
Desse ponto de vista, a Orchestrutopica é visivelmente adequada para tal propósito dada a diversidade de valências instrumentais que agrega para poder, consoante as especificidades de cada obra, compor diferentes ensembles para diferentes exigências composicionais (permita-se o viés de saudarmos a presença até de um guitarrista, o, na altura em que o conhecemos, extremamente promissor Júlio Guerreiro, que agora só não pudemos confirmar ser o excelente Júlio Guerreiro porque, maldição da natureza do instrumento, a sua curta intervenção na peça de Gilbert não se pôde elevar acima da massa sonora de conjunto). O que tem o efeito particular de um concerto desta natureza implicar uma constante reconfiguração do cenário instrumental, implicando certa quebra no andamento da performance. Para não irmos mais longe, a abertura com as “Three Japanese Lyrics” de Stravinsky durou uns cinco minutos, após o que se seguiu logo uma espera para mudança no palco: é caso para dizer, nem deu para aquecer, e as peças diluíram-se na adaptação aos inícios das hostilidades.
Outra característica muito interessante desta performance foi precisamente o seu carácter performativo. Parece-nos ser uma possível característica de parte da produção de música contemporânea que merece particular atenção. Tivemos, só neste concerto, vários casos em que, seja na convocação de diferentes recursos musicais (e musical aqui é no sentido de tudo o que produza som), seja na acção de produção sonora, se manifesta uma postura de interpelação nova à audição e colocação do público no espaço do concerto, que se pode muito bem caracterizar como valência de sedução para novas linguagens musicais que, se instaladas no mesmo cariz estático que caracteriza a produção e comunicação de música clássica (em sentido amplo), e acolitadas somente na novidade dissonante da sua gramática, jogam xadrez com o autismo musical, e tornam a produção e fruição musical áreas de exclusão mais fortes do acesso cultural. Os exemplos: na peça de Gilbert, temos o solista em flautas a dar um gira pela plateia e pelo palco, fazendo circular o som em diversos pontos de difusão, num contínuo teatral de diferenciação espacializada da recepção sonora, tornando praticamente cada ouvinte um ponto único de audição; na peça de Côrte-Real, o recurso a recitantes verificou-se uma opção extremamente feliz pelo contraste bem conseguido entre as linguagens (inglês e francês, e grego, em gravação, declinando escritos de Kavafis) e as impressões sensoriais que a sua expressão não musical (no sentido estrito) oferecem (e como tal, são musicais, em sentido amplo – sendo notória a diferenciação entre o apelo racionalista que se cola à digressão pela memória “póstuma” da sensualidade vivida, em inglês; e o apelo sensualista, muitas vezes sussurrado, não à recordação mas à evocação da sensualidade feita carne (une) autre/fois, em francês, ora pois); também na peça de Côrte-Real, o recurso a certos apontamentos electrónicos soou já mais discutível, na medida em que, exceptuando quando parecem emanações de um disco dos Cosmic Jokers em dia de menor trip, parecem surgir a espaços não como complemento identificável de produção de outros sons, mas quase como substituto de valências instrumentais que o ensemble não comporta, de tal forma que por certos segundos nos podemos equivocar na natureza do som (mesmo que tal fosse a intenção, parece-nos que provaria um ponto de vista que se esgota no seu efeito, e contraria a natureza de um concerto – mas deixemos humildemente a coisa em aberto...); na segunda peça de Takemitsu, temos o final com o clarinetista que se desloca do palco para os bastidores e daí emite os últimos ecos distantes da peça, em belíssimo efeito; na peça de Isang Yun, tivemos a soprano a utilizar de forma plenamente convincente o seu recurso instrumental de forma bem mais ampla do que o registo lírico tradicional, amplitude essa indubitavelmente mais rica para transmitir o agónico conteúdo da peça emanado da memória purulenta do fascismo, o que faz questionar com muita eficácia os limites que qualquer fixação expressiva comporta. Inclusive, e já nos esquecíamos (porque não tem efeitos sonoros, mas é simbólico de algo), até a espaços temos António Carrilho, solista em flautas, a alçar a perna feito Ian Anderson dos Jethro Tull, durante as suas intervenções.
Querem mais performático?
Francamente, para estratégia comunicacional que consiga pela sua inovação a mais planos expandir as margens de recepção de músicas novas, aliciando pelo seu enriquecimento textural de apresentação musical o consumo e socialização de novas linguagens, parece-nos que se pode fazer bem pior e inconsequente. Infelizmente, por enquanto, era Dia da Música, e o auditório da Culturgest estava a um terço.
Keep on trying, boys

Abbey Is Blue


I wish I could be too

terça-feira, 22 de novembro de 2005

A Efémera?!... A EFÉMERA?!?!?!

A sociobiologia já é o que é (e é perigosa, não deixemos a imagem dos animais fofinhos e a facilidade universalista da explicação biológica para os males humanos distrair-nos das falácias lógicas). Agora a sociobiologia de café, não há pachorra.
Anda para aí um anúncio cretino, da safra do vamos-vender-telemóveis-a-arengar-(arrotar-é-feio)-postas-de-pescada-muito-pseudo-very-profundas a aspergir-nos com a sabedoria da vida da efémera. “A efémera”. Que a efémera só vive um dia. Mas que a efémera não quer saber. Que a efémera curte o dia e tá andar. A vida é baril (a malta é jovem, se não nas pernas, no espírito, man), carpe diem pessoal, e comprem um telemóvel com um mês inteiro do vosso salário (que são 30 dias, pessoal, vivam cada um deles intensamente no duro), porque para aproveitar a vida precisam absolutamente (não tinham reparado?) que o vosso patrão possa ver ao telemóvel a vossa fuça esparramada no travesseiro quando já deviam estar no escritório.
Não escavaquemos inutilmente as absurdidades múltiplas. A efémera, to put it shortly, “faz carpe diem”, PORQUE É ESSE O SEU PRAZO DE VIDA!! A efémera, pessoal, não tem que se preocupar com empregos, socialização, empréstimos, ética e moral, famílias, relações sociais, doenças venéreas, efeitos secundários, burocracias e instituições, circunscrições e exclusões. Já NÃO SUPORTO que me venham dizer para viver a vida dia a dia. A nossa sociedade INTEIRA está erigida sobre o pressuposto de que a vida não dura um dia, dura muitos, quem sabe demasiados, pressuposto sobre o qual assenta a maioria das formas de auto-regulação pessoal que nos leva a não levar o querido livre-arbítrio às suas potencialidades trágicas como espetar este monitor na cabeça de quem diz estas barbaridades absurdamente moralizantes («se a sua vida é uma merda, a culpa é provavelmente sua, you’re not seizing the day!» ARRRGHHH!!).
Cavalheiros da sociobiologia de pechisbeque, se a vida humana se vivesse como a efémera, podem ter a certeza que no fim de cada dia os efémeros humanos não se esvaíam sozinhos, arrastavam outros com eles. Mas, e daí?, era só a "espécie" humana (e não há aspas suficientes para isto) a funcionar, não?...
Se eu FOSSE a efémera, viveria como a efémera, e seria feliz, porque era efémero sem apelo ou restrição.
Caso não tenham reparado, não é o caso.

pisses me off...», resmoneou, caso também não se tivesse reparado)

(Ocorre-me agora que se esta gente perdesse mais tempo a dar ouvidos ao Mr. “Felt” Lawrence nada disto acontecia.

«You almost wish you were dying
It would be an excuse to really live
»)

sábado, 19 de novembro de 2005

Contagem Borgesiana

Iniciou-se ontem, ao seguimento desta senda, o doravante contínuo e inexorável afogamento dos escritos que começaram a configurar um espaço, este, uma persona, a que aqui debita um falar.
Ontem, mais uma parte da sua existência começou a ser arquivada.
Doravante, o seu remanescente respirar é por nova via relembrado da pertença de seus frutos aos registos do olvido.
Ahh, arquivos... se fosseis tão somente metáfora, que não metonímia.

sexta-feira, 18 de novembro de 2005

Site Meter

Dantes julgava-me patético.
Agora tenho estatísticas para demonstrá-lo.
Nada como a validação quantitativa.

quinta-feira, 17 de novembro de 2005

O Que é Nacional (às vezes) (também) é Bom

«Estranhamente, ainda que seja pouco pródigo em nomes sonantes, desprovido de massa crítica para tal, o jazz português, nos últimos anos, tem visto consolidar-se um punhado de estimulantes praticantes da arte, que no seu amadurecimento têm vindo a publicar uma série de discos assinaláveis. O facto da diminuta massa crítica apenas torna esse facto mais notável, e é confirmado pelo facto de os suspeitos do costume serem sempre os mesmos (passe a redundância), que vão rodando de disco para disco de (quase) cada um dos suspeitos (do costume...).

O trio de Carlos Barretto, com Mário Delgado e José Salgueiro (respectivamente: contrabaixo, guitarra eléctrica e bateria/percussões) tem-se afirmado como uma das formações imperativas da praça, que já vai conhecendo certa estabilidade: este é o terceiro, ou o segundo registo do trio, consoante contem o brilhante, belíssimo e injustiçado primeiro registo como “Suite da Terra” – e as continuidades desse registo com o seguinte, e bem recebido, “Silêncios”, tornam duvidosa a reprovação do primeiro, e aconselham a assumir os três na avaliação da progressão do trio.

Se do primeiro para o segundo, a intencionalidade inicial de agregar inspirações do universo sonoro da música tradicional portuguesa às dinâmicas jazzísticas se foi desvanecendo, mas ainda marcava parte do apelo evocativo das ambiências instrumentais, neste “Radio Song” estamos num plano outro, em que as angulosidades composicionais e sonoridades mais agrestes se impõem. De constatar, no entanto, que persiste o gosto por dinâmicas de sugestão sonora, mais afastadas do estrito virtuosismo clássico do jazz, sugerindo, inclusive (ó sacrilégio), uma achega até a planisférios mais psicadélicos, que perpetuam parte das dinâmicas de sugestividade sonora mais disseminada que se agregam à degustação plena deste esforço singular no nosso jazz, e que tem sido prosseguida, por exemplo, no projecto Filactera do guitarrista da casa, Mário Delgado (particularmente no agrupamento diminuto de bateria e teclados que o tem acompanhado mais recentemente ao vivo).

Inclusive, chega a propor uma agregação subtil de temas in mezzo del camin do disco (pois que os temas vão apropriadamente do “Searching” ao “Final Searching”), como se de uma suite se tratasse. Esta suite-faz-de-conta-que-o-não-é-não-nos-vão-chamar-progressivos, aliás, epitomiza nos seus cinco temas a diversidade sonora do álbum, desde o sincopadíssimo (já imagem de marca do trio) tema principal “Searching” (serão muitas audições para lhe caçar o ritmo...), a interlúdios de pura melodia, improvisação muito cool, arrancadas rock vindas do nada e para o nada reconduzidas, eflúvios psicadélicos e aberturas puramente free.

A contribuir para laivos dessa dinâmica mais free jazz, temos também a presença de prestígio de Louis Sclavis em algumas faixas, com os seus sopros em registo descompassado, não se esquivando, no entanto, a sustentar uníssonos dos excelentes temas, muito groovy, que, como habitual, o trio disponibiliza para a sua prestação musical, aqui, mais que nunca, com a sua composição a cargo do senhor que encabeça nominalmente a formação.

Se o trio é uma máquina mais que oleada, na integração requintada das sonoridades de cada contributo – e um trio, com esta instrumentação (Sclavis não veio preencher nenhum buraco, garantimos), ter um som tão pleno, é facto que só acarreta mais aprovação – e se a guitarra de Mário Delgado, pela própria sonoridade do instrumento, é o que dá a coloração mais óbvia à paleta sonora, não só essa guitarra é, pelas mãos do seu mestre, plena de sugestão e cambiantes que acrescem à estrita notação musical e improvisativa (do registo mais jazzy a um feeling de rock, passando por emanações de som galácticas), como os restantes elementos não se esgotam em sustentação de mid-section com os tradicionais espaços/tempos designados para improvisação. Barretto fazendo pleno uso das possibilidades do instrumento, técnicas e tímbricas (incluindo belíssimas secções tocadas com arco), e Salgueiro exibindo a sua prolixidade percussiva, não deixam os seus créditos mais que firmados por mãos alheias, sobressaindo em diversos registos e formas de exponenciação, tornando toda a performance de uma diversidade tímbrica, de registos instrumentais, e espacialidades dinâmicas insuspeita para, mais uma vez, formação tão reduzida. Lições que, repetimos, se se agregam à devoção jazzística, bebem subtilmente de outras fontes de inspiração sonora que conseguem enriquecer, sem desvirtuar, toda a empresa de um disco de jazz (tanto mais assinalável quanto essa é argolada das mais recorrentes e fáceis de cometer). Proeza apetitosa e promissora.

Este trio constituiu-se como uma pedra fundamental e doravante imprescindível para a diversidade e riqueza do baixinho, mas potencialmente surpreendente e bem esgalhado, edifício do jazz português, a contribuir para que ouvir o produto nacional não seja uma concessão patrioteira a sonoridades insípidas de jazz xoninhas FM. A expansão que, a partir deste disco, tem aberto o trio para outros projectos, com mais ou outros instrumentistas, pode torná-lo ainda mais uma formação central para a ampliação do panorama estimulante que esta forma de arte seminal, resistente e renovadora pode conhecer neste país. Para os que reclamam da pátria, a precisar de coisas para se animar nestes tempos, olhem que podem arranjar bem pior – ponham os auscultadores e deixem lá a selecção nacional.»

quarta-feira, 16 de novembro de 2005

Touché

É um cliché velho, mas sempre a mandar trancadas na frágil carroçaria da auto-estima, a incapacidade de dar a resposta certa, o comentário certo, na hora certa, a certa situação ou fala que nos atinge de surpresa o distraído orgulho humano. Presença de espírito, língua afiada, e costas previamente almofadas contra a acidez do mundo (o que pode ser perigoso...). Sendo que, princípio de precaução, o mais das vezes mais vale ruminar o resto do dia o que é que se poderia/deveria ter dito, do que assumir o ímpeto sanguíneo revanchista como a atitude certa por defeito.
Digo isto, primeiro porque o ns (a culpa tecnicamente é dele), mo relembrou, ao empregar, in something completely different, uma das expressões mais brilhantes e históricas dessa presença de espírito: o grito às armas de Dylan, contra os próprios (equivocados) fãs, ao ver-se apupado e injuriado como "Judas" (de si próprio, curiosa condição) na segunda parte do concerto do Manchester Free Trade Hall (chamemos as coisas pelos nomes...), em 1966, ao ter trocado a imagem do cantautor solitário com a pastoril guitarra para uma full-fleged-electric-band: «play fucking loud!»
Como convém, a uma certa rolling stone.
Ou como alguém disse: não lhes dês o que eles querem, dá-lhes o que eles precisam (em certos momentos, faz sentido).
E, em segundo lugar, porque isso lembrou-me outra tal resposta, menos “histórica”, mais humanamente terrífica, no «Le Trou» de Becker (assinalada há uns bons aninhos pelo inefável Bénard). Após toda a durée da história ser entretecida com os esforços de um grupo de prisioneiros para se evadirem da sua cela, e se irem enredando as formas de cumplicidade (to say the least...) nesse esforço múto, confirmamos no final a semente trágica da traição ter estado plantada, insidiosa, perversa, naquele microcosmos simbiótico de entreajuda humana (ironicamente, ou nem tanto, ora pois, numa prisão), quando se verifica que um deles (o recém-chegado), Gaspard, havia denunciado o plano, que é frustrado na noite da fuga. Controlados pelos guardas, despidos, encostados à parede, à passagem do incólume Gaspard para receber as benesses ignóbeis do seu acto, um dos prisioneiros profere a sentença mais cirúrgica, porque não há mais revolta, outra revolta, possível, apenas a fatal e pausada sentença, que reverta no possível da dignidade humana a inversão da recompensa terrena:
«Pauvre Gaspard».
Rien d’autre à dire.

terça-feira, 15 de novembro de 2005

Inocência Cultural

Não quis ver o filme «Tróia» para não estragar a leitura do Homero.

O Poema e a Canção

 

Tão despida como a beleza indevida de um corpo desamparado na vulnerável limpidez involuntária da carne, é das canções onde o alçapão de musicar um poema, Poema, nunca rangeu sob o pé fincado do cantador.
Coisa fora de moda, como o cantador, que pouco grava, persiste em portar bigode, e não tem a legião de culto que o evocador instrumento que acolhe na garganta, e gere com cabeça e coração, justificaria.
O poema reza «Conta-me contos, ama...».
A canção repousa aqui:

«A obra-prima clássica será provavelmente “A Cantar ao Sol” (isto na ausência escandalosa de uma reedição do “Olho de Fogo”). Porém, quando este outro disco vai parar à grafonola, mon couer balance (e não é, garanto, efeito da capa, a testemunhar os efeitos duradouros do furacão “Emmanuelle” no imaginário erótico português – está bem, “lavrar em teu peito”, mas não sejamos tão literais..., ainda para mais com o Janita em foto polaroid com cara de Belchior marialva na parte de trás).
Bissexto, como a maioria das criativas criaturas daqui (acrescentemos Fausto e fica a conversa arrumada), poucos discos temos para nos regozijarmos com a voz reputada mais exponencial da masculina parte da música de inspiração tradicional portuguesa. E contudo, reputação bem redutora, se não lhe acoplam os méritos de um compositor de excepção, com um universo sonoro único e largamente inexplorado, em muitas das suas facetas, por qualquer outro criador deste burgo. E de facto, menor, e por isso redutor, parece ser o acolhimento que o autor recebe no panorama da música popular portuguesa, que talvez a sua recorrente ausência prolongada não justifique plenamente. Isto porque um só destes dois discos granjeia-lhe lugar no panteão, e é da mais elementar justiça relembrar o lugar que este disco merece na nossa memória colectiva, quando (sendo já uma sorte estar reeditado) anda maltratado nas promoções das grandes superfícies no meio das maçãs golden e dos êxitos dos Roxette (antes as golden...).
Para além da herança do canto alentejano, sempre representado, mais ou menos (em geral mais) ortodoxamente, em alguma faixa, para efeito delicioso, com a voz de Janita a ornar a massa sonora dos coros, essa herança reclama as suas genealogias num mediterrâneo alargado às Áfricas da cercania, tão facilmente menosprezadas no lastro da nossa história como os mouros escorraçados. Em instrumentação e composição essas terras são resgatadas para o nosso presente sonoro de forma sem paralelo no panorama nacional. Mas o seu mérito não é o de exegeta histórico de ocultas heranças musicais. É o de (re)criador fremente, em canções de singular beleza, poesia e maturação, dos universos de que se reclama, ao ponto de incorporar o que assim deixa de carecer de decalque de aprendiz. A música de Janita É o que convoca, e mais, assim não o mimetizando. Para supremo exemplo dessas capacidades incorporadas ouça-se à incredulidade a destreza natural da assombrosa “A uma escrava que lhe abriu o sol” - num arranjo imaculado (e aquelas vozes, aqueles requebros...), que instala a melodia num requintado tapete persa com baixo à mistura.
Para supremo exemplo de um compositor e cantor que tem no corpo tudo de quanto carece, a quietamente revolta melodia que encarna o poema de Pessoa “Conta-me contos, ama...”, como se a palavra não bastasse, transporta, a capella, para o mais íntimo da desilusão humana, o conforto fugaz de ser partilhada.
Onde porventura o “A Cantar ao Sol” ganhará, será na maior consistência do material. Efectivamente, a adaptação da “Mulher da Erva” do Zeca Afonso soa tortuosa para ouvidos conhecedores do original... e em perfeição daquelas não é avisado mexer. A própria voz parece denunciar no início demasiado voluntarioso da canção o forçado que a homenagem, conquanto sincera no propósito, apresenta nos seus efeitos. Até o arranjo de José Peixoto soa meio trôpego face ao trabalho inspirado que apresenta nas outras faixas onde pôs o dedo sabido. Se há mais uma ou duas faixas que não fazem justiça ao excelso que no percurso das onze se nos pode deparar, o grosso do disco oscila entre o belíssimo e o superlativo, e ainda com a calorosa reminescência do saudoso Mário Viegas em récita na faixa “O poder”.
Ainda que não tendo comprovado a performance que apresentou nos seus mais recentes trabalhos, num concerto de há dois ou três anos, a que tivemos o privilégio de assistir, estritamente a partir de percussão e a guitarra eléctrica do Mário Delgado (muita atenção a este cavalheiro), Janita conseguiu plenamente reconstruir o seu universo sonoro, que de outras âncoras pareceria a priori dependente, dando a ver que a relevância continuada deste senhor insubstituível, e falho de reconhecimento, clama de alto para que se voltem os ouvidos para o pouco que, esperemos que apenas por razões insuspeitas (os silêncios forçados de Amélia Muge, que tem, que saibamos, pelo menos um trabalho com vozes búlgaras, feito concerto há mais anos que os que queremos contar, por ver a luz do dia, deixam-nos em sobressalto sobre os motivos de qualquer silêncio), nos vai deixando ouvir do que só ele comporta lá dentro.»

segunda-feira, 14 de novembro de 2005

Movin' On, You Son of a Gun

Com relutância e inescapável desconsolo, prosseguirei esta senda insensata, tendo que prescindir de ter good old Henry’s loveable face a acolher-me, benfazeja, logo à entrada no blog, coisa que, nos dias que correm, estranho, inesperado e raro calor emanou.
Talvez do que desliza perante os nossos olhos se deva imiscuir na consciência o que desse vislumbre permanente fica. Um tal Edward Estlin C., ou coisa parecida, pode-o ter definido assim:

«there’s never been quite such a fool who could fail
pulling all the sky over him with one smile»

I hope beyond my eyes I’ve learnt my lesson. Porque do sentimento não se pode julgar. Mas em toda a sua pequena solicitação, não posso deixar de pensar que algo maior passava por aquele sorriso. Tanto maior quanto mais pequeno. Hmmm…(inquietação, nostálgico e esperançoso abatimento). Agora que a acção de prosseguir afunda as coisas no substrato deste espaço, esperemos que fertilize nos estratos insuspeitos, um pouco mais longe do olhar, o húmus of my foolish smile. I could use it.

sexta-feira, 11 de novembro de 2005

Abyssinia, Henry(s) (leitmotif e dedicação)

Não me recordando das especificidades da minha inoculação com os episódios do MASH aquando da sua primeira difusão no país (sim, outra vez, a minha vida é só isto, é triste, amanhem-se), descobri hoje, ao pretender falar de personagens de ficção, que no final da 3ª série, com a saída do actor McLean Stevenson, a sua personagem, o coronel Henry Blake, morre na ficção (bem como, soube que o actor já é falecido). Fiquei deprimido.
Não me interessa agora a estultícia de terem prosseguido uma série sem a sua mais bela (nos espaços em que podia respirar), interessante e complexa (e, logo, desaproveitada) personagem por uma infinidade de épocas. Até porque não me lembro desse futuro passado.
Mas é espantoso (e é o seu aparente absurdo que me move) como, mesmo na frágil tessitura de um personagem que é possível erguer num formato relativamente estandardizado de sitcom, se pode conjurar na amálgama singular de um corpo, dos gestos e palavras que comporta, esse inefável sortilégio de os sonhos encorpados que de gente de carne se criam se tornarem outra ou mais carne que a gente.
Não é questão o dilema do que salvar do incêndio da casa: a vida é condição de tudo mais, e a criação humana, da pequena comoção à grandiloquente circunscrição, sempre se renova e já demasiado nos ultrapassa, limitados mortais. Mas sei que, mesmo salva a vida de carne, das imagens de corpo e vida que me trespassa(ra)m, guardo perene na memória aquilo que perdi no fogo.


Abyssinia, Henry..

Ahh, ganda mulher!! (no pun intended)

«O facto de raça ser um conceito nascido de uma selecção arbitrária de traços humanos para justificar assimetrias que historicamente serviram propósitos de dominação que aí também se ancoraram para se legitimar, é um dado histórico fundamental, mas não suficiente para desvanecer a persistência dos efeitos que a organização da vida social e da percepção em redor do conceito suscitam. Isto porque um conceito social não precisa de formas de validação científicas para operar: basta-lhe que haja gente a atribuir-lhe crença de validade, e pode perdurar para sempre, por muito que se clame que essa validade é nula. Daí que as estratégias de gente e grupos para contestar esses efeitos possam ser várias, contraditórias ou até conflituantes. Uma delas é assumir que as diferenças que esses conceitos erguem estão enraízadas em terra de séculos, separaram mundos sociais, e para ultrapassar as dominações que sustentam tais divisórias há que trabalhar com essa diferença demasiado sedimentada para poder ser ignorada e partir do zero. Que é como quem diria: se nos fizeram outros, pois sejamo-lo com orgulho. Se é a melhor estratégia, é matéria de discussão, que aqui não cabe. Mas qualquer estratégia pode ser mais valiosa se sempre for aliada a algum bom senso, que sempre faltou aos mais elaborados, rígidos, e geralmente lamentáveis, programas de tranformação social. E quando tal estratégia se corporiza, por exemplo, na beleza plácida mas decidida de um objecto artístico destes, algum crédito já arrebatou. Tal intróito serve os propósitos de uma recensão musical, porque é de tal programa estético-político que se poderia dizer que emana este belo disco de uma senhora de seu nome Virgínia Rodrigues. Como diria um saudoso amigo brasileiro, branco(?) de tez por acaso, e senhor de uma versão particularmente sagaz e benigna daquela estratégia, “nós, os negros” temos agora nesta senhora um novo estandarte de valorização estética de uma condição social que, por mais que se quisesse, a história (não o leitmotif da biologia) não deixa pura e simplesmente deitar para trás das costas: a negritude. Mais ainda, Virgínia Rodrigues tem o mérito de ser das poucas mulheres (outra assimetria biologizante) a quebrar com mérito próprio a dominação masculina dos mundos da música, a que a música brasileira não escapou. Mesmo no caso da louvada Elis, a condição de intérprete, que tolheu a maioria das vozes femininas, condiciona-as a escolhas de repertório e arranjos que exigem muitas vezes mais esforço que o humanamente compensatório para resgatar da desqualificação sonora o fio de uma interpretação vocal. E quanto mais não fosse, bastava um senhor chamado Chico de ascendência Buarque andar por essas águas para que os nossos afectos musicais rezem, sem que lhes fosse pedido, “nós, os homossexuais”... (não juramos conseguir cobrir todas as categorias de assimetria social até ao fim da recensão, mas faremos um esforço...) Contudo, a senhora do dia logo à primeira audição se imiscuiu nas nossas dedicações, a força de pura voz, e de umas ajudas de primeira água no bom gosto. A primeira audição, no entanto, nem foi neste disco, mas nas divagações brasileiras de António Chaínho no seu “Lisboa-Rio”, de agradável memória, do qual a belíssima faixa original com madame Rodrigues era provavelmente o farol. Ao pegarmos neste álbum de estreia, possibilitado pela “descoberta” de Caetano de que estava por aí, em cantos recolhido, este vozeirão, a já não tão frescota moçoila, mas muito viva, dá de si o que muitos não dão com toda a incauta e descomprometida juventude. O disco abre a cappella, e para quem o não soubesse, com voz desta é difícil falhar, de tal modo parece talhada no ébano de uma dedicação singular, avessa a rebaldarias sonoras. Voz que doravante é a definição de cava, que ecoa (intencionalmente) vozes de negritude transplantada e renascida mais vezes que as que humanamente se julgaria possível, o seu timbre é todo um programa, e contam-se pelos dedos das mãos os timbres que nisso se lhe equiparem. E é todo esse programa que o disco cumpre, ilustrado no Sol Negro do título, das divinas cordas que ecoam nas nossas gargantas, e na especial arte de capa, toda em tons de negro, branco e dourado. Contudo, a voz, por si, raramente se basta. E a conquista deste disco, se corre nesse regueiro, conta-se também pelo repertório e pelos arranjos. Todo o disco é um desfrute, garantido. Mas um punhado de faixas são inacreditáveis, em que aquela divina trindade vem ao de cima gloriosa. Se o repertório foi escolhido a dedo e se reclama das mais diversas expressões, lamentações e exaltações da negritude, não só brasileira, como chegando a catrapiscar um espiritual norte-americano, os arranjos vão pela árdua mas compensadora via do less is more: são escolhidos a dedos os instrumentos para cada faixa, e usados na mais estrita necessidade expressiva. Pura lição de inteligência e sensibilidade na arte do arranjo, na sua exiguidade a evocar a regra e esquadro as movimentações de corpos num ocaso colectivo, que no seu oblíquo espaço concentram mais luz, outras luzes, que iluminam mais que a razão soube por muito tempo, espaço e cabeças, reconhecer. E se falámos de programa, e se daqui se pode destilar uma perspectiva política e epistémica para a condição da negritude, o seu destilar é de uma vibração estética superior que não se elabora prosélita para lá do que as palavras de um sentimento e vivência inspiram. As consequências do discurso fiquem para semiólogos e cientistas sociais, que existem para algo. No nosso discurso aqui segmentado, só beleza, mágoa e celebração epidérmica, contida e comovente nos interessa destacar. Pela mão de Caetano, provavelmente, o disco acaba por agregar outras luminárias, interessantemente absolutamente dispensáveis neste contexto. Aliás, mal se dá por elas, o que foi outra escolha inteligente: é (não) ouvir Gilberto Gil e Djavan a fazer coro indistinto, que qualquer tamanco vocal faria, em “Terra Seca” (e só não pensamos que a sua participação é uma ironia escancarada, porque não queremos atribuir a ninguém tamanho descaramento ou malvadez). Aparentemente, o prato forte está a cabo de Celso Fonseca, que deu mais que se poderia esperar nos arranjos, e a direcção artística nas mãos de Caetano. Sem fazer a partilha de créditos, souberam certamente dar todo o protagonismo à voz que decidiram sabiamente aqui servir. E a rarefacção instrumental que identifica timbricamente cada faixa criou o espaço perfeito, não de acomodação, mas de verdadeiro complemento a tal voz. Mas genial, genial, são duas faixas. Se o resto prima pelo mesmo bom gosto e estratégia, a “Noite de Temporal” e o “Negrume da Noite” são os sóis negros por excelência deste disco. Ornadas de berimbau e percussões (escassíssimas), exclusivamente, são um portento expressivo, impressionantes como raras (por exemplo, duvidamos que algumas vezes as meras palmas das mãos tenham sido usadas de forma tão eficaz como no corte tímbrico que acentuam na segunda destas faixas – recurso que julgaríamos para sempre proscrito depois da sua prostituição na história da pior pop orelhuda, que também a há boa, claro...). A justeza dos passos tímbricos a pontuar e acompanhar a descrição de vidas feitas de augúrios tecidos no sal encarniçado abaixo da pele, de vidas a clamar o excelso da condição pela qual são desqualificadas (talvez o recurso último de emancipação discursiva), não cessam de surpreender a cada audição, plenas de teleporte mental para o auditor. Já de si belas canções, nestas versões valiam um disco cada uma. O resto é menor, mas não é “material menor”, com belas canções, justamente desenhadas, desde Caetano ou Carlinhos Brown a clássicos de Luís Bonfá e Ary Barroso (este em explícita e impressionante denúncia - a consciência social tem às vezes mais faces, tempos e espaços do que o presente recorda), só destoando um pouco o inglês atabalhoado do espiritual “I wanna be ready”. Principalmente, “Adeus batucada” ainda nos estimula em particular, é comoção à brasileira, na qual nem na hora da despedida se abranda o passo que ritma a cadência do coração, com fanfarra de sopros contida no ponto. O resto, vai cumprindo na linha o passo seguríssimo deste disco singular, em que às belas recuperações da voz negra, em vários espaços e colorações (que convenhamos, negro e branco nunca foram cor de gente, nem antes do Technicolor), se juntam até canções de uns brancos jeitosos, que também os houve, uns poucos, com juízo, alguns dizendo, cantando, “nós, os negros”.»

quinta-feira, 10 de novembro de 2005

Vertigem




Será que as trips dos Cosmic Jokers se transmitem por osmose auditiva?

quarta-feira, 9 de novembro de 2005

The Ghost in the Machine

À medida que vai progredindo a minha internacionalização subsidiária, duplicando no meu telemóvel os nomes dos meus contactos para lhes incorporar os sufixos das paragens onde agora se esplanam, parece-me que, de cada vez que o aparelho toca, faz ressoar, entrecortado, um riso escarninho.

terça-feira, 8 de novembro de 2005

Não sacámos a nominalística à conta do Chris Andrews, não...

«Robert Wyatt foi primeiramente um dos músicos centrais da chamada cena de Canterbury do progressivo inglês, mais jazzística e afastada dos sinfonismos que descambaram nos clichés que ainda hoje tornam o género vilipendiado a priori em muita esfera pública, tendo comparecido primeiro nos seminais Wilde Flowers, depois nos consagrados Soft Machine, posteriormente agrupado os singulares Matching Mole, e tendo exercido inúmeras colaborações com outros músicos que até hoje têm o bom gosto de o convocar. Contudo, essa parte do seu currículo, que parece ser já uma súmula, cumpriu-se efectivamente nem numa década. E após o momentum do progressivo na primeira metade dos anos 70, Robert Wyatt, ainda que com mais colaborações, mas escassa produção, configurou-se como uma das poucas figuras de autor dessa era que soube demonstrar quão funda era a raiz da sua música, mantendo-se em plena vitalidade criativa, irrestrita por classificações, nas décadas subsequentes, reconfirmada já no novo milénio. Vitalidade essa que, pela sua própria natureza, se fez da reconfiguração das premissas em que assenta a sua música. Talvez como uma espécie de Peter Hammill, sem a hiperactividade, e com o dramatismo afogado (a deixar antes ouvir uma bolha aqui e ali...). Old Rottenhat, um dos exíguos títulos que lançou nos anos oitenta, como noutras décadas aliás (exprimindo talvez a sua velha inclinação para actividades mais produtivas, como dormir), pode suscitar estranheza na sua oferenda musical a quem espere deparar-se com algo de inspiração mais "classicamente" progressiva, mesmo na vertente heterodoxa dos agrupamentos a que pertenceu. De facto, a tessitura musical do álbum configura-se no movimento mais back to basics que Wyatt maioritariamente exprimiu nas obras subsequentes ao seu período de catarse rock bottom, como que exprimindo a partir da estrita circunscrição dos limites da sua própria pessoa a solidão constitutiva do seu discurso musical. Consequentemente, um combo de sintetizadores, esparsas percussões e voz, tudo a encargo do próprio, foi quanto careceu para ancorar as canções que por aqui pairam. Mais que suficiente, à luz leda destas melodias, para quem busque música no seu mais simples encantatório. Ao ouvir a voz de Wyatt (que para muitos, bons e sensíveis ouvintes, é já câmara de entrada para a comoção) esboçar no cristal imperfeito do seu ambíguo falsetto os vôos das suas envoltas melodias, um universo singelo de emoção contida se destila aos poucos para um deslumbramento insuspeito. Para todas as decadências anunciadas da melodia na música contemporânea, o simples fio que articula músicas como "Alliance" e "Mass-media" é a contra-prova cabal. Efectivamente, para os encantados, percussão e sintetizador quase seriam mero suporte descartável, não fosse a heterodoxa herança jazzística de Wyatt a soltar, como possibilidades de outro universo que daquelas melodias se poderia destacar, pequenos devaneios instrumentais em intermezzo ou codas de várias canções, que desconstroem, no mesmo movimento, a continuidade e o transtorno das melodias em que se entroncam, modulando de forma outra o que julgávamos, incautos, ser o seu tom perene. O melhor exemplo desse exemplo maior de singular escrita de canções é mesmo o literalmente esboço que termina o álbum, "P.L.A.", mais uma dedicatória à companheira (amorosa e produtiva) Alfreda Benge, em que de dois versos, uma sequência melódica, e o final desaguar instrumental, todo um espraiar afectivo se desvela, num pano de motivos infantis, que nos remetem, na desarmada ternura que instalam, para os desenhos naïf-mas-sei-o-que-estou-a-fazer da esposa “Alfie”, que aqui, como quase desde o início da vida musical a solo de Wyatt, se ocupa da desarmante arte de capa dos seus álbuns, produtos do verdadeiro casal-cooperativa. Consideremos, contudo, que mesmo estes esparsos recursos sonoros não deixam de ser explorados com a máxima sageza, conseguindo-se efeitos de densificação sonora insuspeitos para tal arsenal, com overdubs de voz e outros pequenos truques do ofício, como a construção em crescendo de “Garbzadeghi” demonstra. E porque Wyatt se fez também homem de palavras (outra invulgaridade para os clichés do suposto género progressivo), as investidas políticas permanecem como substracto aguerrido em arguta elaboração, imprevisto em tão despida e delicada empresa. Investidas que, não traindo mas não decalcando as filiações assumidamente marxistas do autor, se orientam politicamente para a crítica de muitas margens do real, característica também de basta produção a solo de Wyatt. Aqui, para lá de críticas de classe (que de mais palavras não careceria senão o intróito de efectiva canção popular old rottenhat em “Gharbzadeghi”), mas também críticas às formatações comunicacionais dos mass-media, às dissimulações das desigualdades sociais nas (ditas) sociedades de consumo, aos fechamentos etnocêntricos do olhar e à desigual estrutura de poderes do mundo que organiza essa insularidade e soberba cultural, entre outros, é de relevar um tema que, neste canto também banhado pelo Atlântico, nos escapou na altura, certamente: uma referência a um certo território, deixado à mercê da anárquica lei internacional do mais forte, chamado Timor-Leste. Se olharmos para a data em que o Sr. Wyatt dele se lembrou, dir-se-ia que, até por aí, muita gente devia ter posto os ouvidos neste cavalheiro há muito tempo atrás.»

segunda-feira, 7 de novembro de 2005

Lost "By" Translation

O material audiovisual é a fracção do universo da tradução nacional onde provavelmente se atingiu o grau zero da estrita competência profissional e cultural (desengane-se quem julga que são matérias separadas e que uns cursozinhos à maneira e a despachar formam o pessoal para o mister – quem neste ponto julgue que isto vai ter a ver com futebol tem um sério problema). Quem domine a língua original (expressão de cautela para o 1% da programação não lusófona que não chega em inglês) da matéria traduzida é constantemente, em cinema e televisão, esbofeteado por recorrentes erros de tradução, daqueles nem susceptíveis de divergência interpretativa, derivados de puro desconhecimento da língua em que se trabalha (ou das línguas, para abarcar em maior amplitude o problema, já que fica difícil traduzir para português quando também não se domina o português). Como é que se criam formas especializadas de aprendizagem e certificação destas competências para chegarmos a estes resultados é indicador directo da indigência da formação especializada neste país, mas é também sintoma de problemas mais profundos, que é a formal inanidade intelectual generalizada em que alegremente se deixa escorregar proporções cada vez mais amplas da população, não obstante estenderem a escolaridade obrigatória até ao pós-doutoramento. Provavelmente para que, com cada vez mais cara de pau, se vir poder a fazer o elogio das elites.
Isto vem a propósito de traduções, porquê?
Porque, recentemente, ao rever «A Última Tentação de Cristo» na televisão deparei-me com o que no domínio da hermenêutica estratosférica poderia ser discutido como uma divergência interpretativa, mas é uma opção de tradução absurda, a raiar o obsceno, a denunciar a lógica invertebrada e fragmentária a partir da qual se cada vez mais se aborda uma tradução: na frase final do filme, que, para quem não sabe, é um thriller sofisticado de espionagem com uma pitada de humor, Jesus, (re)crucificado, restaurando a condição de Cordeiro de Deus após ter sido tentado por Satanás a abandonar o sacrifício na cruz para viver o resto da vida como homem comum, profere:
«it is accomplished».
Tradução:
«Missão cumprida».

O que me lembrou o exemplo mais inconcebível de tradução desmiolada com que já me deparei. Notem como, quando o tradutor não sabe a que é que uma palavra se refere, por incompetência ou por ignorância de um patamar mínimo de cultura geral, tende a optar por duas soluções prêt-à-porter: ou por grafá-la de forma onomatopaica, quando pode ser uma palavra com tradução; ou por traduzir literalmente aquilo que é uma designação nominal ou expressão idiomática.
Por mais racionalização que se aplique, recuso-me a conceber como concebível (mas a realidade está sempre um passo à nossa frente) que num dos filmes de terror chunga que saudosamente passavam nas “Sessões da Meia-Noite” (que infelizmente não era de porno, como o nome sugere) ou coisa assim, das madrugadas da RTP1 há largos anos, numa cena em que o assassino arrastava o corpo da sua obesa vítima e resmoniava «You Moby Dick», me apareça no rodapé a legenda «Seu Moby pila».
Por uma vez, não foram as atrocidades sanguinárias da película que me deram pesadelos nessa noite.

domingo, 6 de novembro de 2005

quinta-feira, 3 de novembro de 2005

Mulher de Chico

«Sou Ana do dique e das docas / Da compra, da venda, da troca das pernas / Dos braços, das bocas, do lixo, dos bichos, das fichas / Sou Ana das loucas /Até amanhã /
Sou Ana, da cama / Da cana, fulana, bacana / Sou Ana de Amsterdam»


Concordava em caixa de comentário passada que Ana de Amesterdam seria provavelmente, das vitrines de Chico (Buarque, para quem desconheça o seu exclusivo identitário no uso público estrito do primeiro nome), o retrato de mulher com mais impacto. Por razões que dizem respeito a mim e à vida comprovada que tomam as pessoas personagens, como Ana, hoje, 3 de Novembro, é o dia em que me faz sentido relembrar essa singularidade poética.

Nunca fui particular adepto de uma tese, bastante veiculada nos meios brasileiros, que defende como uma central característica de Chico o conhecimento profundo do sentir feminino. Não só por não sustentar qualquer universalismo sobre o que raio seja um sentir feminino, como por a própria abordagem, frequente é certo, mas não mais que outras, do feminino na imaculada obra do imaculado autor não sustentar um tal universalismo.
O dado interessante que faz a citada singularidade de Ana de Amesterdam, é que as mulheres de Chico, nominais ou não, são geralmente mulheres situadas. Ou seja, aquilo que Chico desvela, e é apreendido nas generalizações vulgares como uma especificidade do feminino, são condições situadas do ser feminino, tal como é apreensível numa dada realidade. E das mulheres em situação que se retiram os traços da sua caracterização e condição, com os quais o contexto da canção se articula em dialéctica, desvelando naquela perfeita decantação sua mútua constituição.

Porque será então Ana de Amesterdam o retrato mais impactante de mulher de Chico? Porque Ana é Ana. «Sou Ana, obrigada». Ana não se define em situação. Ana incorpora a situação num ser que desenha o seu fim de percurso. Ana é Ana. Sou eu, estou aqui, assim me fiz, acabou.
Ana retrata-se e apresenta-se, implacável, nos termos do seu ser. Ana é o que se fez, tem história, mas essa história cristalizou-a no retrato, implacável e dito irreparável, da crua condição.
«Sou Ana dos dentes rangendo / E dos olhos enxutos»
Ana é o choque, a cicatriz na cara, a carne demasiada, o excesso do real humano. Nada é, no seu presente, tão radical como este retrato, entre as mulheres de Chico. O que implica que a geralmente presente tematização emancipatória (ugh) em Chico, neste retrato segue uma possibilidade diferente.
Este retrato relata o passado para se fechar no presente. Relata-o no sarcasmo, sarro, da ruga do saber pútrido que escarnece. E no entanto, a redenção (palavra, é vero, insensata, como palavra, mas não como possibilidade, neste contexto) jaz no que o presente nega. Ana recita-se como hoje encerrado, orgulhoso de raivosa e resoluta resignação de personagem estragada. Cinismo ácido contra a própria face. Desprezo por um olhar de compaixão, reflectido no escarnecer do percurso da sua própria antecessora (que outro nome portaria, porque só agora esta é Ana de Amesterdam).
«Eu cruzei um oceano / Na esperança de casar / Fiz mil bocas pra Solano / Fui beijada por Gaspar»
E, no entanto, no sentido desse retrato está a esperançosa acção que nesse percurso a depositou. O orgulho do horror só nasce em contraponto: a linhagem da esperança no esplendor.
«Arrisquei muita braçada / Na esperança de outro mar / Hoje sou carta marcada / Hoje sou jogo de azar»
O discurso sempre foi um instrumento da nossa própria denúncia. Dificilmente as nossas palavras já nos salvaguardam, elas falam mais que o que polimos na sua superfície. No que na crua ferida se escancara é a carne que outrora a reunia. A ferida só acaba quando é oculto o seu queimar. Mas o que arde se geme, queixa ou rememora. Neste retrato final de existência morta de esperança outra, a esperança outra que nela culminou é invocada para a ratificar defunta, para traçar a linha do não retorno.
Mas o que se enuncia é que o passado é mais infeccioso que as chagas «da brasa dos brutos na coxa / que apaga charutos». O que se enuncia é que nada termina final quando o começo ainda é memória. O que se enuncia é que Ana tombou toda a ladeira e se queda na espera negada, de quem na lama entranhada vislumbre luz cerrada, e no mais opaco dos poços consiga um outro despertar.
Nada disto é sugerido, per se, evidentemente. Mas é a sua possibilidade estrutural. Quanto maior a queda relembrada, mais alta a redenção, calada, para não nos dilacerar insuportável a esperança proporcional de alcançar. E no fundo do último reduto, Ana anuncia não querer a sua, como a mais invisível carta onde ocultar o apelo. O que se enuncia, é que não haja fins em vida absolutos. Não seria humano o seu escutar.
Ana ainda canta por trás do seu escarrar. Haja quem saiba escutar.
E poucos mais que Chico, quem saiba cantá-la também, mesmo quando no dique das docas, na cama, nas Índias, nas barcas.
Nas marcas, nas marcas.

terça-feira, 1 de novembro de 2005

Cansaço

Repousar no remanso de beleza resolutamente menor, desaparelhado o peso e o juízo do mundo.