O que fiz dos anos (and counting) em que não mais degustei medronhos?...
(a agreste capa de espinhosa tez a equivocar quanto à suculenta e húmida têmpera da qual é constitutiva - não há casca nesta espantosa oferenda - de pequeno fruto, em tamanho ainda não da indignidade substancial da baga, porventura o mais singelo fruto a merecer a inteireza da designação singular antes da colectivização da degustação - comem-se uvas, cerejas, mas só se come um medronho, ainda que se comam mais, é um na dignidade de cada vez, não na voracidade da sequência plural antecipada. Sim, a enganosa capa espinhosa a compensar para o desvio dos néscios a generosidade da aberta declaração de madureza na inequívoca coloração da bondade frutícola. Suponho, medronho, que medroso (ou sim, declinação produtiva de similitudes, merdoso) não fiz por te merecer. Ameaça-me com essa cara de mau, dizendo: isto terá que mudar. Far-me-ás bom desejo (provavelmente o único possível))
Diospiros (uma dúzia, não mais) do tamanho de clementinas, mal amadurados, colhidos na esperança de a temperatura da cozinha mais a Sul lhes ser favorável à síntese do pouco mais de doçura que abata o sarro (não seria inédito). Ou seja, que comecem literalmente apodrecer e sejam degustados no preciso momento antes que a decadência se faça gustativamente irreparável. Prazeres sofridos são os mais queridos? Estas oferendas não as trocaria.
Se for dada a oportunidade (os dois ingredientes não se tendem a misturar no panorama do consumo cinematográfico), ir ver um Manoel de Oliveira ao cinema e comer pipocas na sala.
Cinema português em centros comerciais comportando múltiplas salas de cinema (eu sei, há uma terminologia qualquer, mas não a conheço e não lhe dou intimidades): é raro, mas acontece, e quando acontece perto de mim fraquejo no comodismo de quedar o visionamento mais perto da residência, em vez de deslocar-me ao resquício de uma sala com brio. Sessão da meia-noite, como (quase) sempre, a minimizar risco de cabeçudos (nos dois sentidos) e pipocas (mesmo na eventual expectativa de selecção de práticas sociais pelo objecto de visionamento). Pela segunda vez (já acontecera com o «Noite Escura» e agora com «O Fatalista»), entro e saio da sala sozinho, a película desenrolada, fotograma a fotograma, em sessão exclusiva, só para mim. Estranho privilégio me outorga triste panorama.
Ao fim de quatro posts, precisamente porque ao fim de quatro posts, se percebe porque é que, talvez arriscando a validação prática da sua metodologia moral, Santo Atanásio exemplifica o seu princípio com matéria de fornicação - a moral exige, para subsistitir na pachorra da sua dissertação, substância suculenta e tentadora.
Qual era a graça de esgrimir contra pecados de chacha? A moral pode ser muitas coisas, mas nunca lhe conveio ser sensaborona.
Claro que isto não me pode ser seriamente proposicionalmente imputado, quando, parafraseando, talking about morality is just a thing you do when you're bored.
(o que implica uma espécie de presumida auto-suficiência moral que também é problemática, claro, que talvez na sua circunscrição negativa e circunstancial de se transmutar discurso basicamente na face de pés que pisam, com o que pisar implica de delimitação moral, dedos que preza, principalmente dedos que pense deverem ser prezados na condição de não serem de pés que pisem dedos outros, pretenda ser menos daninha, mas não prosseguiremos a temática, pelo menos agora - I'm not THAT bored)
Curioso como na afirmação do princípio do olhar alheio se sustenta a tentada arte de vigilância moral de si de Santo Atanásio. Tal parece implicar uma insuficiência do indivíduo para dar conta do seu estatuto moral nos termos da sua acção. Contudo, é evidente que existem olhares irmanados no pecado (como no exemplo de não se fornicar sozinho, presumindo, para o argumento, tal como pecado). O que implicará que, a pôr-se a censura do olhar alheio na nossa própria vigilância, é quanto à qualidade desse olhar que se pode ater a firmação moral. O «não fornicaríamos diante de testemunhas» (e note-se como fica bem ao escriba o emprego da primeira pessoa do plural), implica pois uma noção particular de testemunha, como figura isenta da cooptação no acto pecador. Mas tal figura só pode exercer tal papel (mesmo que passivo, pelo mera presença) de instigador moral, na medida em que as categorias que mapeiam os actos em torno do pecado se encontrem reconhecidas e validadas pelo pecador. Invertem-se pois os termos da composição da vigilância de si. Se a autovigilância não se basta na sustentação moral, a hetero-vigilância tampouco (na sua medida de não-coacção directa, física, claro - o que foi pouco o caso, mas é o que agora interessa). O problema que finalmente se coloca, é que esta gestão da moral pressupõe uma validade universal de acesso e reconhecimento dos seres nos seus ditames. É essa condição que foi perdida com fim das várias unicidades que pretendemos dar aos mundos. A noção possível de moral só pode ser no espectro dessa ambição hoje uma concepção relativa, compósita e negociada das morais que diferentes criaturas vão envergando em diferentes circunscrições da vida. É isto que os proselitas se recusam a compreender. É isto que no mais pacífico fechamento da crença que se crê razão, instaura os muros e as fachadas, sem toque de humano no cruzamento. É isto que, por não ter mais que fazer, hoje penso lamentar.
«Eis uma coisa a observar para se ter a certeza de não pecar. Que cada um de nós note e escreva as acções e os movimentos da nossa alma, como que para no-los dar mutuamente a conhecer e que estejamos certos que, por vergonha de sermos conhecidos, deixaremos de pecar e de trazer no coração o que quer que seja de perverso. Pois quem consente ser visto quando peca, e após ter pecado, não prefere mentir para ocultar a sua falta? Não fornicaríamos diante de testemunhas.» (Santo Atanásio, Vida e conduta de nosso pai Santo António)
« O que é que se faz quando se extingue os Pixies (e ressurreições não são para aqui chamadas)? Obviamente, reformamo-nos com uma pensão vitalícia da Unesco por contribuição incalculável para o património da humanidade. Mas como a música da entidade dúplice “Frank “Black” Francis” não tende para o óbvio, achou que era hora de dar as voltas ao nome e propor ao mundo outra forma de música que não arrancada ao núcleo do planeta que todos pisamos, mas não vemos como singularidade espacial. A partir daí, claro, segue-se o opróbrio, porque os declarados génios não podem ser menores. Ora, sucede que ser cativo do passado é triste forma de vida e, como tal, o renascido Frank Black espeta-nos o dedo médio na face e prova que existe regressão à juventude: arma-se das suas paixões musicais de adolescente e põe-se a fazer canções que não pretendem conter, cada uma, um inaudito universo sonoro de significado - porque não é vida isto, de ser sempiternamente um cometa inaudito, o filho que redime toda a linhagem do rock donde se pariu a si próprio (porque este filho só pode ser de autogestação – por muita genética musical que haja a espremer paternidades).
Ora, depois disto dir-se-á que só se pode continuar a ouvir os restos de inspiração deste homem(será?) por fidelidade canina. Ora, uma pinóia. O pequeno duende voltou a criar numa rodela de substâncias de registo sonoro um novo planeta (sim, não é descobrir, é criar)? Não. O duende anafado voltou a criar canções que mais criatura alguma engendraria com um objecto musical de seis cordas encostado às protuberâncias digestivas? Oh yes, baby!
A prova de que a fidelidade canina não é questão, é que qualquer bicho com tímpanos, este vosso incluído, percebe que material para descartar é coisa que enxameia qualquer disco do senhor Black. Mas não há um onde não haja momentos onde nos salte ao cérebro uma de duas: “Hum...” (como quem tropeça no que pode ser a descoberta de uma adição para a tabela de elementos) ou “O que é que foi isto!?” (como quem viu de relance – porque as canções podem não chegar a durar dois minutos - marcianos a surfar nas nuvens – a metáfora fácil, ora pois, não se ambiciona mais para o que escapa a qualquer apreensão e fechamento intelectual, senão ficar calado – hum, why didn’t you?...).
O primeiro álbum homónimo, é verdade, por razões que não podemos explicar senão a proximidade ao corpo defunto dos pequenos seres mágicos, conseguimos ouvir, conseguimos apreciar, não conseguimos distância, não conseguimos avaliar. Bizarro. Obra-prima, não é. Singular, é adjectivo que não lhe escapa.
“Teenager of the Year” é provavelmente o mais estimulante, fragmentário e sugestivo, com pistas para todas as direcções a cada faixa (são 22, por isso vejam a balbúrdia que não vai naquela cabecinha), desde o revivalista ao “benvindos ao planeta Black”.
“Pistolero” é talvez o mais coerente deles todos (os posteriores ainda não nos caíram nas mãos – o senhor esteve em fúria produtiva que não dá para acompanhar), em que o que é para descartar não chega a ofender, vindo de quem vem (ao contrário do que pode acontecer nos prévios), e vocifera rockalhadas discretamente épicas e epicamente escorreitas como quem boceja displicente ao anúncio da morte do rock – esse problema não é seu.
Ah, pois, isto era sobre o “Cult of Ray”: o mais abertamente esquizóide: lado 1 (vamos fingir que continua a haver lados... é categoria muito heurística) quase todo dispensável; lado 2, obrigado señor Black.
Abre com a promissora “The Marsist”, com as densas harmonias blackianas, a distorção da surf guitar a levantar a poeira lunar, e a estranheza deste homem querer berrar até pôr a máscara alienígena na lua a piscar o olho (o que é possível, pois este é o senhor do berro mais imaculado e significante que qualquer corda vocal emitiu, a envergonhar a banalidade da rotina metaleira). Depois, bla bla bla, o homem tem direito a viver a segunda adolescência, a escrever punk digerível, a transbordar indulgência com as costuras harmónicas para que o straight rock ao menos pareça mal cosido, até a ensaiar baladas rock (ugh!) felizmente ainda com harmonias adiposas e demasiadas palavras para se levar a sério.
E depois, e depois... primeiro, in your face, “Mosh, don’t pass the guy”, energia punk gostosa, e pensamos, “Hum... será que isto promete?” - oh! doce profecia. Surpreenda-nos mais uma vez señor Black: ora aí têm, meus caros ... “kicked in the taco”! Qual “Hum…”, qual carapuça, isto é “Uau!”: o adolescente regredido tem memória do homem que foi e, não deixando de ser adolescente, ainda sabe fazer canções que dispensam mais que dois minutos, repetições, refrões e secções, são um naco de música orgânico que só precisa de fluir do princípio para o fim sem regras de escola auditiva a ditar o caminho.. A “Dance War”, que está no lado 2, também é desopilante, mas se trocasse de lugar com a “The Marsist” tornava a divisão espacial do disco perfeita (embora seja de elogiar a perversidade de nos titilar ao ínicio e fazer-nos esperar pelo lado 2 para o prato forte que, afinal, sim, anunciava mesmo – wicked little fat man...). O resto segue a mesma bitola sem bitola do homem que lá fez o esforço diletante para nos lembrar que há vida em Marte, mesmo quando já encerrou a estação interespacial. “The Creature Crawling” a ecoar sismicamente os seus passos trôpegos na placidez autista dos nossos quintais. “The Cult of Ray”, em homenagem não surpreendente, vinda do alienófilo de que vem, a Ray Bradbury, é das sucessões mais conseguidas de riffs desopilantes a cutucar-nos nos quatro costados, que consegue a proeza de no final da sua infatigável jornada instalar a contemplação do que escondem as estrelas. “The Adventure and the Resolution” a ensaiar caminhos não trilhados (e não repetidos), nem pelo próprio, com material sonoro que não sonhava com tais travessias de abstracção sonora (principalmente nas condições quase pré-históricas de gravação a que o cavalheiro é atreito). “The Last Stand of Shazeb Andleeb”, a ensaiar um hino em surdina (a voz a escorrer no leito do baixo – oh Frank, afinal és também um sedutor...). A redenção é doce, para mais quando a sentimos como nossa (a não aceitar que se desista deste cavalheiro).
Ah, e havia aqui pelo meio um tal Lyle Workman a tocar lead guitar, que, caro Frank, como é que deixou partir? Não é um Joey Santiago (et pour cause...) a desenhar nebulosas de som a partir de notações de hieróglifos, mas no seu classicismo melódico era dos poucos guitarristas rock a saber parir um solo que vai a algum lado, ainda para mais só tendo direito a 15 segundos para o efeito, numa canção a la Black.
E pergunta-se, como quem denuncia his master’s voice: e como raio é que um álbum com um lado descartável vale o cacau de o comprar e a pachorra de escrever demasiado sobre o que o envolve? Bom... há perguntas que não merecem resposta.
Subia umas largas escadas numa praça pública, e no instante em que passo por um velhote na mesma ascensão, ele estaca para se dirigir a um grupo de moças que desciam, apontando-lhes que as calças brancas que envergavam era frias para esta altura do ano.
A solidão não se compadece das convenções sociais.
As moças, encavacadas, abrandaram, tartamudeando um "sim" "pois", e seguiram meio desconcertadas o seu caminho.
As convenções sociais não se compadecem da solidão.
(pergunto-me que proporção das desenvolturas da blogosfera não são variações, em novas convenções, sobre um velho tema)
Porque a coisa foi mesmo de peso na formulação de um substrato de nacionalismo perigoso no ideário político do candidato Cavaco Silva, veja-se, por quem percebe da poda, esta explanação da concepção de direito de sangue que, efectivamente, sustenta proposições, não explícitas na forma mas inequívocas na substância, sobre concepções de nacionalidade como as que referimos no post anterior relativamente à resposta de Cavaco, no debate com Louçã, sobre os critérios de regulação da atribuição da nacionalidade portuguesa a imigrantes.
Cavaco como Presidente da República está claramente tomado na discursividade pública como um facto consumado. O que implica que todas as leituras da factualidade da sua campanha e prestação como candidato presidencial são vergadas à inevitabilidade de o senhor vir a ocupar a cadeira. O que se torna mais aberrante quando esse senhor que todos já se controlam para não se equivocarem a designar como sr. Presidente manifesta todas as qualidades para não ser um candidato sequer com perfil para levar a sério enquanto candidato. Só por cegueira das fatalidades anunciadas (Cavaco Presidente) é que ninguém apontou com a devida clareza que Cavaco saiu simplesmente cilindrado do debate com Louçã. Foi aliás dos debates mais humilhantes para um candidato presidencial a que já assisti. E isto não tanto ou somente pela competência retórica de Louçã (fora um desvio populista inacreditável e perfeitamente dissonante no final), mas pelo próprio vácuo da sua concepção política anunciada, e pelos substractos não assumidos de viés políticos que assomam a espaços na sua discursividade, que nem sempre se atém à ausência de conteúdos que tão voluntariosamente lhe pretende imprimir.
Desde logo, estamos perante um candidato que se recusa pronunciar-se sobre as matérias porque não quer condicionar à partida o seu perfil e as expectativas dos partidos quando fôr ocupar o cargo. Ou seja, Cavaco quer ser como que o presente que a actuação governamental e o seu Portugal verão o que contém quando tiverem que a abrir em Belém (não vale abrir antes do menino nascer...). Deve ser para garantir a eleição atiçando a curiosidade dos eleitores (votar no senhor só para ver afinal o que é que ele faz - o seu departamento de marketing deve andar a rever muito Hitchcock). Estamos depois perante um candidato que faz do seu currículo de economista e de experiência governativa o fiel da validação do seu exercício das competências políticas: o governo precisaria de alguém afinado com os problemas do país, tal como eles são definidos hoje em dia (em linguagem e fechamento economicista), para poder dialogar de forma responsável. Ora, o cavalheiro com esse currículo mete os pés pelas mãos no debate no que toca à questão fulcral (fulcral) da Segurança Social dizendo apenas que se necessita de novos estudos (quando já foram realizados e apresentados, disponíveis) sobre o impacto das medidas avulsas que nos últimos anos foram tomadas nesse domínio. Facto confirmado nos comentários ao debate na SIC Notícias, mas que não causam mais comentário senão o acharem "estranho" Cavaco desconhecer tal facto. A teleologia a funcionar: o homem vai ser presidente, pelo que face ao fait accompli esta argolada não pode minar o perfil do garantido futuro Presidente. É apenas estranho. Escandaloso e inconcebível, nunca. Finalmente, estamos perante um candidato que,no seu pretenso vácuo ideológico, deixa escapar demasiado lastro, formulado (devido certamente à sua não-elaboração ideológica) de forma demasiado daninha, para ser ignorado como inconsequente. A forma como enfatiza a palavra "portuguesa", duas vezes, na frase em que contesta a facilidade com que se discute a atribuição da nacionalidade portuguesa (e repete enchendo a boca, "portuguesa"), a imigrantes, ou mais especificamente a filhos de imigrantes (em política de jus soli) é o bolo-rei ideológico com que escancarou as entranhas nacionalistas neste debate, culminando com a cereja em cima do bolo que foi sustentar a sua dúvida, por exemplo, no perigo de os portugueses virem a ficar em minoria em Portugal (para além do "perigo" hilariante de antecipar mais de 10 milhões de imigrantes virem suplantar a proporção da população "portuguesa" no país, aquela formulação, por mera lógica linguística, define que para o cavalheiro os estrangeiros a quem é atribuída a nacionalidade portuguesa não passam verdadeiramente a ser "portugueses" - caso para perguntar, então a atribuição de nacionalidade significa o quê? Isto é a política de sangue na atribuição da nacionalidade o mais clarinha possível. Simplesmente, não nos deixemos enganar, em formulação de circunstância, não assumida, como tudo neste senhor). Ao que acrescenta que a questão da nacionalidade nem seria tão importante como questões concretas como o acesso à saúde, à educação, etc. Mas o senhor julga porventura que a atribuição da nacionalidade é uma frivolidade simbólica nacional que só serve para as pessoas poderem passar a andar com uma bandeirinha de Portugal pespegada na lapela? Que não implica precisamente a aquisição de uma panóplia de direitos enquanto cidadãos de um país?
Embora o que nos interesse seja relevar a perversa teleologia da "certamente" futura presidência cavaquista, Louçã, que esteve muito bem (independentemente da concordância das suas posições políticas, e obviamente mais liberto, ainda não plenamente, também não sejamos ingénuos quanto à liberdade discursiva dos pequenos partidos, pela natureza da sua candidatura a explicitá-las sem entraves e subterfúgios), convenhamos, borrou a pintura de forma inacreditável com o recurso às cordas sensíveis da "história verídica" do "menino imigrante". Num debate em que com invulgar justeza e clareza se posicionou face ao que lhe foi colocado, e pôs em xeque os inúmeros buracos da figura e da matriz política de Cavaco Silva, não se percebe como é que insere de forma, perfeitamente controlada e estratégica, esse apelo demagógico. Se vai começar a entrar por aí (e tudo indica que sim), a credibilidade que meritoriamente na sua posição partidária e política difícil ia conseguindo sustentar, merece preocupação grave e dúvida quanto ao seu substrato político também. Louçã, pelos seus pergaminhos, melhor que ninguém, deve saber que o discurso não é inconsequente. Se daí se retirarem consequências sérias, como se deve tirar relativamente a Cavaco, não se queixe: claramente ele as pediu.
Cavaco, só numa democracia esvaída de reflexividade pública séria, que determina teleologicamente por constrangimentos exclusivamente extra-situacionais a validade e probabilidade relativa dos resultados esperados de uma eleição, é que depois deste debate pode ser levado a sério sequer como candidato. Comparando o facto futuro consumado com o facto presente em construção, numa democracia séria isto seria uma anedota. Mas numa democracia séria não há factos consumados destes. O silogismo é fácil de completar.
Diospiros maduros no ponto, colhidos do diospireiro na horta, derramando-se, descaindo as defesas do sarro, ofertando-se na doce e dissoluta textura, entrecortada na surpresa de firmes gomos gelatinosos.
(não há diospiros, Diospiros, de mercado. Cada diospireiro que morre na paisagem anormalizada é um mundo puro de sabor desaparecido. Não sei se procurarei reencontrá-los entre essas obscenas reproduções, quando me estiverem interditos. Sei que na raridade desse pleno e fugaz encanto perdido me apetecia viajar os 180 quilómetros que me separam da árvore para ver se haveria um para partilhar com quem padece do mesmo sortilégio).
(o diospiro, Diospiro, bendito seja, continua a ser delicioso para lá do ponto, mesmo demasiado passado, mesmo desfeito: às vezes é a única forma de ultrapassar o sarro)
(diospiro, tem no Brasil, chama-se caqui. Alguém tem obrigação de comê-los por mim)
Anónimo (que espero me perdoe a indiscrição...) inquiria se o disco que mencionava no post «Afinidades Electivas», e que referia em comentário ter emprestado para nunca mais, seria porventura uma "raridade", que não pudesse ser (re-)adquirido numa "loja da especialidade". Respondendo no devido registo chão, como que impenetrável por figuras de estilo: não, não é com certeza de todo raro. Estará numa qualquer Fnac a 8 euros. Mas o MEU disco era aquele exemplar. Substituí-lo seria qualquer coisa como comodificar excessivamente aquela pertença inefável, e no mesmo passo materializaria a descrença na possibilidade humana de arrependimento e reparação. Ora, não seria decente da minha parte fechar de forma demasiado displicente a porta à redenção alheia. E enquanto a privação não se torna insuportável (felizmente, muitas voltas já ele tinha na agulha até se gravar em cilindro de superfície carnal), a saudade e a memória (juntas) constituem outra forma de alimento de que se aprende a usufruir (em certos fins, é o que nos resta; o mais seria até insuportável).
Dedicada leitora orientava-me a face para o facto de comentar mais do que postar, condição bizarra para blogger que se preze ou que não se preze. Mas tal condição não é de estranhar, e sugere aliás assumir certa intermutabilidade entre blog e caixa de comentários (ainda que na gestão complexa das subterrâneas correntes). Faria certamente sentido para esta espacialidade personificada. Raras vezes me tive em boa conta a sós comigo. Só em interacção senti por vezes algo de insuspeito, internamente, a se validar. Assumi sempre protagonismo mais digno em secundárias funções que como actor de moto próprio. Experimentei diversas formas de realização e em todas as que me exigiam o primeiro papel ressenti a amarga consciência da aceitável mediocridade que se sabe aquém. Sempre argumentei melhor em diálogo que em solilóquio, sou mais competente a rever produção de outrém que a encabeçar a minha, sei melhor avaliar e apreciar os méritos alheios que alimentar os meus. Não é de espantar que, nessa estiolada produtividade de ser, a minha presença na blogosfera, num espaço em torno de um self constituído, seja confrontado com a ironia de o melhor de mim (e melhor indica só grau, não qualidade) poder estar refundido no acrescido secretismo de caixas de comentários. Vem-me à cabeça em figura de redenção possível o valoroso Ward Bond (e um doce para quem o nome faz tocar os sinos), para supôr que o valor intrínseco dos modestos homens (humanos, vá...) seja algo a que só os grandes se alcandoram a resgatar (sendo que há duas formas dessa grandeza) . Nesse sentido, pelo menos, não mais valiosa, mas mais rara pérola se fariam.
Desilude-se o crente expectante da absoluta metafísica inspiração. Carece-se também respirar ou ter respirado outros ares para emergirem certos (a Emily não é práqui chamada) caracteres prenhes de desacorrentados sentidos. Não há verbo para a vida sobreposta às águas estagnadas. Curiosa transmutação para sopros que pretenderam outro alcance: o corpo a estiolar nas margens do vácuo assoberbante do ecrã negro.
«A primeira obra dos supremos progressivos Gentle Giant, dos multitalentosos irmãos Schulman e companhia, estreados no vinil em 1970, tende a ser relativamente desconsiderada no seu património. E de facto, para quem produziu incessantemente em menos de uma década títulos indisputados como do mais belo e complexo que neste movimento estético se inscreveu, é difícil não olhar este como um título menor na sequência que os levou até “Interview” em 1976.
Contudo, se os álbuns devem ser vistos numa série de perspectivas contextualizadoras, também devem ser vistos como entidades em si. E, como tal, este contém coisas francamente insubstituíveis para um ouvido dedicado, e lança já pistas bem seguras para o que viria a ser o modus operandi deste combo imbatível. A inicial “Giant” é basicamente um exercício de estilo rítmico, a ensaiar possibilidades, mas de destreza agradável na secção inicial. O mesmo poderá ser dito de “Alucard” (não pensem em dicionário, pensem em anagrama), a ensaiar experimentalismos sonoros distorcidos e fantasmáticos que não ficariam como marca sonora dos senhores, pelo que é uma curiosidade revisitar. E depois, bem, depois há a beleza dos melodistas que estes cavalheiros também eram, como se não bastasse a sua supremacia também instrumental, vocal e de composição. Francamente, não se vê que os outros agrupamentos da época pudessem ter outra reacção às suas performances senão “estes gajos até metem nojo!” (talvez seja a pista que faltava para descodificar o seu, ó! de bradar aos céus, insucesso). Ouçam as melodias que iluminam a balada “Funny Ways”, que no desbunde síncopado do seu intermezzo anuncia as mini-sinfonias que fariam as maravilhas sonoras de 4 minutos de álbuns como “Octopus” (o que, considerando a necessidade da maioria das bandas de um lado inteiro de vinil para atingir uma amostra desta complexidade, acrescenta crédito à hipótese “estes gajos metem nojo”); ou a mais que deliciosa canção para quarteto de cordas (não leves a mal, Costello, alguém se lembrou disso primeiro...) “Isn’t it quiet and cold”, com um solo prodigioso no vibrafone (está bem, cordas e mais qualquer coisinha...), que seria presença regular no arsenal destes multi-instrumentistas. Ou ainda o lírico início de “Nothing at all” que, se se estende por nove minutos, é por lá para o meio dar a mão iniciática, mas já irreverente, a um decalque classicista (ninguém é perfeito...), que cedo é devidamente abardinado para descambar num delírio free de percussionista sob speeds e um técnico de mistura drunfado. E se não sabiam da relação entre trovadores medievais e bluesmen, ouçam a progressão central da “Why Not?” (indeed...), que num minuto liga temporalmente distâncias-luz de uns quantos séculos (coisa pouca), e numa progressão brilhante retoma, sem aquelas quebras progressivas, o completely different tema inicial, para culminar num solo bluesy de guitarra bem esgalhado para redimir as aberrantes, infindáveis e insignificantes masturbações sonoras de guitarristas que desconhecem que não é para isso que o braço da guitarra serve (equívoco de consequências graves para audiências, e ainda mais para o instrumentista). É que o cavalheiro com o instrumento nas mãos era um tal Gary Green, que não ficará nas enciclopédias, mas percebia da poda, sabendo que um solo tem que dizer qualquer coisa mais que “olha, agora sem mãos” – não, não é uma piada ao Hendrix, que tocava melhor com os dentes que a maioria com os 10 dedos).
E porque não foi só Zappa que se lembrou de perguntar “does humour belong in music?”, uma versão jocosa em orgão e guitarra marados do hino inglês (é verdade, o Hendrix outra vez, mas juramos que não foi planeado...) é um remate airoso a um álbum que, por si só, é audição mais que recompensadora, e não só premissa do que estava por vir, que, por sinal, atingiria logo um pico no seguinte álbum, e obra-prima, “Acquiring the Taste”, onde revisitam alguns procedimentos estilísticos aqui inaugurados, como, por exemplo, a improvisação de percussões em “The Moon is Down”, ou a angulosa canção para cordas “Black Cat” (que nem são os zénites do álbum, para que não julguem que não foi uma superlativa renovação da linguagem musical, mas só mais do mesmo).
Começava assim um percurso incomparável e deslumbrante de exploração das possibilidades específicas que uma tematização contém, movimento de desenvolvimento musical que estes senhores impulsionariam a inéditos paroxismos formais, numa lógica cada vez mais refinada, internalista e densificada (no espaço e no tempo), em certos momentos a sugerir paralelos sonoros com uma configuração pictórica a la M. C. Escher.
Ah, e já agora, porque não foi só Zappa que se lembrou de perguntar “does humour belong in music?”, atenção ao pequeno teaser de sintetizador que, qual toupeira impertinente, vai escarafunchando pelo disco: só a sua aparição gozona antes da elegância de “Isn’t it quiet and cold?” valeria o preço do álbum. Nem se percebe como é que ainda ninguém se lembrou de o pôr como toque de telemóvel...: bolas, os rapazes eram mesmo visionários... Até mete nojo.»
Assinalou-se dia 2 de Dezembro a milésima execução legal de um ser humano nos Estados Unidos da América (não obstante a honrosa excepção de 12 estados - somente - que não contemplam essa pena no seu sistema legal), desde que a pena de morte foi reinstaurada em 1976. Ao mesmo tempo, chegava à minha caixa de correio uma mensagem de corrente emanada originalmente da secção portuguesa da Amnistia Internacional, com uma carta pré-formatada, para pedir ao governador da California (Schwarzeneger lui-même) clemência (reparem como no mesmo acto se combina a possibilidade de apelo consequente à salvação da carne, e a necessidade de um acto de suposta excepcionalidade benigna e toda-poderosa por parte da autoridade personificada: they do playGod) em face da agendada execução de Stanley Williams. Williams, referido como tendo um percurso de redenção pessoal particularmente meritório em intervenção social pós-encarceramento, é apresentado como um dos casos mais abonatórios para a contestação de tal forma final (eliminando consequentemente a possibilidade do tão "cristão" arrependimento e de minimização e compensação pelos crimes, que por aquém que sejam de todo o acto criminoso, sempre são mais do que o irreparável, infértil, e potencialmente equívoco ceifar de uma vida) de punição (sendo que a percepção da possibilidade dessas "excepcionalidades" à justeza da aplicação da pena de morte poderá nas boas consciências ser matizada pela possibilidade referida e perversa da clemência pessoal do governador).
Não literalmente pelo senhor em si, mas, ainda que de forma relativa, tomando-o como sujeito a forma de punição que rejeito, enquanto ser humano, confrontado com a aceitabilidade social feita realidade política e judicial de seres humanos se confrontarem com ela, lá reenviei, violentando a minha relutância subjectiva e imobilidade corporal a agregações, o mail pré-formatado para o endereço do governador (ainda que, na minha relutância a estes processos de agregação informática, duvidando do sentido disto). Eis que no dia seguinte me deparo com duas respostas na volta do correio: uma primeira, resposta pré-formatada do gabinete do governador a todos os mails que entram, a agradecer a correspondência e a avisar que a resposta podia demorar... E uma segunda, certamente igualmente pré-formatada, "assinada" pela secretária para os assuntos legais do governador, a informar do processo, dos trâmites legais envolvidos na ordem execução e pedido de clemência, e agradecendo muito polidamente a correspondência, garantindo que o governador iria tê-la em conta na tomada de uma decisão. Passado o espanto da eficácia informacional (e não comunicacional) da governação por aquelas bandas, me apercebi de como assim, trocando documentos pré-formatados, polidos e sensatos, se vai esvaindo a discussão da vida e da morte dos homens, de a quem cabe (se a alguém cabe) decidi-la, em que circunstâncias, porque meios (a obscena tecnocracia da morte no seu esplendor). Suponho pois que essa polidez organizada (à qual o realismo organizacional obriga a agregar-se esta estratégia da própria Amnistia Internacional) seja mais uma das vias pelas quais se elabora e mantém a delicada e suave tessitura da civilização, e o estiolar da crítica no realismo político (quando em nomes de outros "valores" "civilizacionais" outros realismos vão sendo alegremente descartados). Pois, na face da civilização, e não rejeitando necessariamente a ideia dela, mas fazendo-a outra, ainda que em comparativamente impotente discurso, só me resta escrever, para me relembrar, que na engrenagem da civilização desses senhores, a pena de morte é, persiste, um pilar de barbárie. Esta sua ornamentação, talvez cumpra importante função social, mas de momento, nestes momentos, só me pode suscitar repulsa.
Duas pessoas que se imiscuíram na ordem dos meus afectos, em modalidades completamente diferentes (uma, a quem me atém dívida de etérea natureza, não sabe da minha existência, tão pouco; a outra pode ser directamente acusada por responsabilidade incitadora do crime público que é esta coisa (blog?!) existir, e que neste dia me vem na distância a uma memória), vim a dada altura a verificar sustentarem o mesmo encanto por um mesmo certo verso entoado por um certo mesmo encantado homem:
«it’s never over, my kingdom for a kiss upon her shoulder».
O tio Goethe, acolitado a fazer cartilha do romantismo, conseguia ser um bocado insuportável. Para dispersão de qualquer bibliófilo que por aqui andasse, devo admitir que o Werther faz parte das minhas irritações subjectivas de estimação (e muitos velhos suicidas endrominados provavelmente me acudiriam nessa inclinação). Agora, não se pode negar que o homem, quando acertava, era em cheio.
Ia o je descansadamente equivocado na faixa do Bus ao descer para o Marquês do Pombal, quando um senhor agente da autoridade em motocicleta passa pela minha esquerda fazendo sinal para me encostar para a faixa correcta. Ao anuir com um aceno e um sorriso de admissão de culpa à chamada de atenção, e deslocando-me para a outra faixa, eis que o agente se posiciona do lado direito do automóvel, e eu, descendo a janela para abrir as margens de comunicação, ouço vociferar o homem do distintivo: «o senhor acha graça, é?!». São tempos e/ou personagens perigosos quando a primeira, epidérmica, interpretação de um sorriso é que ele seja criminoso. Principalmente intérpretes armados. Talvez fosse conveniente pôr antes os psicólogos da polícia de plantão. É que era um problema privado o facto de eu não lidar bem com a autoridade. Masjá indicia um problema público quando a autoridade começa a priori a não lidar bem comigo.