O Que é Nacional (às vezes) (também) é Bom
«Estranhamente, ainda que seja pouco pródigo em nomes sonantes, desprovido de massa crítica para tal, o jazz português, nos últimos anos, tem visto consolidar-se um punhado de estimulantes praticantes da arte, que no seu amadurecimento têm vindo a publicar uma série de discos assinaláveis. O facto da diminuta massa crítica apenas torna esse facto mais notável, e é confirmado pelo facto de os suspeitos do costume serem sempre os mesmos (passe a redundância), que vão rodando de disco para disco de (quase) cada um dos suspeitos (do costume...).
O trio de Carlos Barretto, com Mário Delgado e José Salgueiro (respectivamente: contrabaixo, guitarra eléctrica e bateria/percussões) tem-se afirmado como uma das formações imperativas da praça, que já vai conhecendo certa estabilidade: este é o terceiro, ou o segundo registo do trio, consoante contem o brilhante, belíssimo e injustiçado primeiro registo como “Suite da Terra” – e as continuidades desse registo com o seguinte, e bem recebido, “Silêncios”, tornam duvidosa a reprovação do primeiro, e aconselham a assumir os três na avaliação da progressão do trio.
Se do primeiro para o segundo, a intencionalidade inicial de agregar inspirações do universo sonoro da música tradicional portuguesa às dinâmicas jazzísticas se foi desvanecendo, mas ainda marcava parte do apelo evocativo das ambiências instrumentais, neste “Radio Song” estamos num plano outro, em que as angulosidades composicionais e sonoridades mais agrestes se impõem. De constatar, no entanto, que persiste o gosto por dinâmicas de sugestão sonora, mais afastadas do estrito virtuosismo clássico do jazz, sugerindo, inclusive (ó sacrilégio), uma achega até a planisférios mais psicadélicos, que perpetuam parte das dinâmicas de sugestividade sonora mais disseminada que se agregam à degustação plena deste esforço singular no nosso jazz, e que tem sido prosseguida, por exemplo, no projecto Filactera do guitarrista da casa, Mário Delgado (particularmente no agrupamento diminuto de bateria e teclados que o tem acompanhado mais recentemente ao vivo).
Inclusive, chega a propor uma agregação subtil de temas in mezzo del camin do disco (pois que os temas vão apropriadamente do “Searching” ao “Final Searching”), como se de uma suite se tratasse. Esta suite-faz-de-conta-que-o-não-é-não-nos-vão-chamar-progressivos, aliás, epitomiza nos seus cinco temas a diversidade sonora do álbum, desde o sincopadíssimo (já imagem de marca do trio) tema principal “Searching” (serão muitas audições para lhe caçar o ritmo...), a interlúdios de pura melodia, improvisação muito cool, arrancadas rock vindas do nada e para o nada reconduzidas, eflúvios psicadélicos e aberturas puramente free.
A contribuir para laivos dessa dinâmica mais free jazz, temos também a presença de prestígio de Louis Sclavis em algumas faixas, com os seus sopros em registo descompassado, não se esquivando, no entanto, a sustentar uníssonos dos excelentes temas, muito groovy, que, como habitual, o trio disponibiliza para a sua prestação musical, aqui, mais que nunca, com a sua composição a cargo do senhor que encabeça nominalmente a formação.
Se o trio é uma máquina mais que oleada, na integração requintada das sonoridades de cada contributo – e um trio, com esta instrumentação (Sclavis não veio preencher nenhum buraco, garantimos), ter um som tão pleno, é facto que só acarreta mais aprovação – e se a guitarra de Mário Delgado, pela própria sonoridade do instrumento, é o que dá a coloração mais óbvia à paleta sonora, não só essa guitarra é, pelas mãos do seu mestre, plena de sugestão e cambiantes que acrescem à estrita notação musical e improvisativa (do registo mais jazzy a um feeling de rock, passando por emanações de som galácticas), como os restantes elementos não se esgotam em sustentação de mid-section com os tradicionais espaços/tempos designados para improvisação. Barretto fazendo pleno uso das possibilidades do instrumento, técnicas e tímbricas (incluindo belíssimas secções tocadas com arco), e Salgueiro exibindo a sua prolixidade percussiva, não deixam os seus créditos mais que firmados por mãos alheias, sobressaindo em diversos registos e formas de exponenciação, tornando toda a performance de uma diversidade tímbrica, de registos instrumentais, e espacialidades dinâmicas insuspeita para, mais uma vez, formação tão reduzida. Lições que, repetimos, se se agregam à devoção jazzística, bebem subtilmente de outras fontes de inspiração sonora que conseguem enriquecer, sem desvirtuar, toda a empresa de um disco de jazz (tanto mais assinalável quanto essa é argolada das mais recorrentes e fáceis de cometer). Proeza apetitosa e promissora.
Este trio constituiu-se como uma pedra fundamental e doravante imprescindível para a diversidade e riqueza do baixinho, mas potencialmente surpreendente e bem esgalhado, edifício do jazz português, a contribuir para que ouvir o produto nacional não seja uma concessão patrioteira a sonoridades insípidas de jazz xoninhas FM. A expansão que, a partir deste disco, tem aberto o trio para outros projectos, com mais ou outros instrumentistas, pode torná-lo ainda mais uma formação central para a ampliação do panorama estimulante que esta forma de arte seminal, resistente e renovadora pode conhecer neste país. Para os que reclamam da pátria, a precisar de coisas para se animar nestes tempos, olhem que podem arranjar bem pior – ponham os auscultadores e deixem lá a selecção nacional.»
2 comentários:
Quase sempre é bom, Julinho. Mas istop é excelente! Bj
Eu fico no às vezes. O problema com o às vezes é que quando é bom não é quando é apreciado. As contradições que fazem parte da miséria da cultura nacional. Como dizíamos relativamente ao Janita há bocado, e a outros geniais (Geniais) cultores da música de inspiração tradicional portuguesa (mas quem vinga quem é?, as dulces pontes e as hordas do fado, em parte independentemente da sua qualidade, que obviamente também aí não é tudo igual)
Fora isso, neste caso, e em mais casos do que se possa presumir no jazz protuguês, tens razão, é excelente. Ponto.
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