- well, it looked like it, or smelled like, or taste...uh, let's leave it at that)
© Mário Pires
«Até sociologicamente, ou principalmente sociologicamente, o Festival Músicas do Mundo em Sines tinha o ano passado atingido o seu culminar. Este foi o ano da institucionalização, plasmada nas práticas organizacionais (encarecimento exponencial dos bilhetes – ainda a preço de festival, mas...), nas escolhas de programação, na busca de formas de gerir um corpo indeciso que entre a expansão e a atrofia, na estereotipização de uma afluência espectadora que se dirige para um evento marcado no calendário, que não para os conteúdos de que esse evento se nutre, e o futuro começa então raiado de incerteza. Dito de outra forma, como não se carecia até este momento: where do we go from here?
Assentemos arraiais no programa, não obstante, aquilo que justifica o olhar mais substantivo que possamos declinar sobre a configuração do festival. Infelizmente, mais uma vez, por lamentadas dificuldades operacionais do escriba de serviço, não pudemos comparecer de todo, ou com o mínimo enquadramento para produzir juízos, a todos os concertos dos três dias de concertos em Sines. Digamos pois, desde logo, que Nuru Kane não vimos; e Trilok Gurtu e Farida deram óptimos concertos, mas não estamos em condições de sobre eles seriamente falar.
O início dos concertos do Castelo foi inaugurado, em justo gesto, pelos Gaiteiros de Lisboa. Com novo disco ainda por lançar desde o concerto de lançamento no CCB, tivemos pois direito a nova revisitação e antecipação das músicas que mais ressumam intemporalidade contemporaneamente. Investindo cada vez mais na complexidade no urdir dos arranjos, na colocação das polifonias, há no entanto uma dimensão ritualista que convoca sempre o mínimo conhecedor da obra para um regresso à terra de novo lavrada pelo generoso dilúvio sonoro destes homens entre homens (a comovente “encenação” da «La Sarandillera», por exemplo). Se os Gaiteiros dos primórdios careciam de espaço livre para expandir a sua inaprisionável pulsão sonora, a expurgar a força de gaitas encorpadas e bombos ribombantes com as entranhas da terra como pele percutiva, o relativo apaziguamento que o investimento na policromia nos temas tem acarretado torna-os menos incitadores de um envolvimento corpóreo. Nesse sentido, os seus concertos para públicos carentes apenas de um ritmo tribal para o trampolim tornam-se um desafio. Apesar de provavelmente já demasiado inteligentes à superfície (no magma da sua música sempre o foram) para tais contextos, os Gaiteiros seguem, no doseamento dos estímulos que a sua obra já incorpora, do telúrico ao jocoso, do experimental ao visceral, a continuar a sacar grandes concertos do bolso, ainda que em alguns registos se possam notar downsizings de alguns efeitos que constituem a riqueza cornucópica da sua música, quando de facto é a capacidade de conseguir transmitir a mesma impressão de espanto para um palco que é de nos deixar atónitos e comovidos à raiz do ser.
O concerto de Rabih Abou-Khalil manifestou outra vertente dos problemas de formatação da audiência e das expectativas auditivas no festival. Portador de uma linguagem híbrida que do timbre do alaúde e da prolixidade percutiva faz exalar uma amplitude sonora em que a metáfora da tapeçaria pode passar à tecelagem dos mais diversos enredares sonoros, tornando perfeitamente profícuo o inseminar jazzistico, Abou-Khalil entregou uma performance feita de arroubos tímbricos e divagações jazzisticas inspiradas mas que manifestamente lhe exigiu o desvio virtuosístico, particularmente no ataque feroz e sonoro do instrumento a convocar o excesso e a trepidação, para conseguir cativar a atenção dos milhares à sua frente que conversando ruidosamente se sobrepuseram eficazmente a qualquer tentativa dos instrumentos de se enredar em tessituras mais subtis. Um grande concerto desperdiçado.
Já Toumani Diabaté deu provavelmente o concerto mais bem sucedido do festival. Ancorado na sua Symmetric Orchestra, a convocação dos idiomas da música popular moderna para propulsionar uma linguagem, timbres e instrumentos de outra tradição, resulta impressivo e irrestível, pela sageza na combinatória que se volve um corpo orgânico de sedução sonora. Discreto, embora simbolicamente sugerido como mestre pleno de cerimónias, Diabaté prodigaliza com a sua kora, instrumento belo à estupidificação que inclusive fez questão de pedagogicamente ilustrar no seu funcionamento à audiência, texturas melopeias harmonias e encantamentos em trinados enrodilhados absolutamente desarmantes. E facto mais surpreendente é o enquadramento eléctrico da aventura, não sendo nada de novo em certa música africana, surgir com rara qualidade simbiótica acoplando-se à perfeição nos vôos e sortilégios subtis que aquela kora sempre emana. Como se pela distracção eléctrica do corpo outro alimento se absorva no ar para alcançar o que alma desconhece carecer.
Os The Bad Plus, tendo beneficiado também eles da gloriosa indiferença do público a tudo o que não se assemelhe a djembés batucando a compasso binário, produziram, a despeito do chamariz das covers de música pop, um jazz razoavelmente idiossincrático que desse apelo de inspiração resguarda uma certa atenção às modulações expressivas no registo improvisativo. Não é certo como resulte para puristas do que se queira, nem juramos pela dinâmica em disco, mas conseguiram pelo menos evitar os escolhos mais assinaláveis.
As Värttinä só podem ser entendidas no meio deste cartaz como mais um sinal de institucionalização de um festival que pretende agregar chamarizes pela bitola dessa disforme coisa chamada sucesso. Autêntica girls-band da folk, empacotada com coreografias para as cançonetas e tudo, ressumaram banalidade estridente por todas as pregas das fatiotas, com vagas desculpas de polifonia de trazer por casa, e mid-section musculada e bem electrificada para não equivocar o rasteiro cançonetismo que verdadeiramente as anima. Um erro lamentável e de mau augúrio.
Finalmente, o Cordel do Fogo Encantado surgiu depauperado da sua parafernália cenográfica, que se acopla às raízes expressivas de uma música que clama teatralidade na simbolização de um universo de todas as coisas híbridas paridas da união da terra com o céu. Não obstante, o seu propósito não se deixou equivocar, e produziu o espanto da rispidez da vida seca sertaneja falando do terrível e maravilhoso esconjurado do pó que o lírico da frente, Lirinha, evoca, na expressividade que se agarra ao tresvario do corpo. No seu primitivismo tímbrico, de um só violão e diversas percussões composto, brotam narrativas, imagens, mitos e criações que é tudo o que pode brotar do agreste sertão, recriando as tradições repentistas, as profecias apocalípticas, a literatura de cordel, que numa amálgama de um povo jogado na estéril poeira de todo o chão que por incríveis meios os viu nascer criou o espaço para devaneio mítico e narrativo como a única amplitude da alma a resguardá-la da crua amplitude do corpo apenso nas ventas à terra ardente. Nessa veia, o Cordel do Fogo Encantado surge quase como herdeiro do que Zé Ramalho, em veia psicadélica nos fins de 1970’s, intentou e conseguiu nessa fascinante sublimação humana da secura que a aridez da geografia e a iniquidade dos homens pretende soprar na alma, inseminando-a de cosmos, forças maiores daqui e d’além e desafio; e no retorno ao imaginário da secura transposta para os seus parcos recursos musicais, na verdade, o Cordel consegue do seu único violão (por Clayton Barros) arrancar uma prolixidade insuspeita de figuras musicais, não obstante atreita em toda a agressividade a uma afronta quase punk, que no avanço das percussões a forçar o olhar de mais horizontes, lembra, ainda que no invés da estratégia produtiva, o fervilhar que Chico Science quis ciberneticamente instaurar no mangue. É dessa qualidade dialéctica que boa parte da música brasileira persistiu na criação de sempre mais de tanto mesmo. Afinal, no que é ousado, tudo cabe.
Os concertos na Avenida da Praia foram objecto de digressões nossas ainda mais lacunares. Do que vagamente espreitámos, fiquem umas notas sem compromisso de juízo seguro. Vusi Mahlasela revelou-se um nome a reabilitar o emprego de expressões como cantor de intervenção, sem a canga ideológica que por cá fez a maioria dos seus portadores enjeitar a classificação, e com os méritos musicais que eximam de tal legitimação estrita a sua recepção. Com historial de luta contra o apartheid e continuada intervenção no crispado clima social da África do Sul, a força de uma voz voluntariosa e linhas de guitarra dinâmica, Mahlasela oferece acima de tudo um investimento no real em que o amplexo de uma alegria (aceitemos a palavra) de mais e melhor, sustentada nas memórias do que foram os pequenos, somados, gestos de persistência, conforma uma entrega superior em tempos sempre de provação. Uplifting, dir-se-ia, por todos os ângulos por onde se o escute.
Os Alamaailman Vasarat, que já nos haviam atacado no Gouveia Art Rock, persistem no seu eficaz e bem engastado registo combinatório de escalas balcânicas ou com declinações klezmer à tentativa provocação de riffs metalóides propulsionados pelos violoncelos electrificados em staccatos marciais. Convenhamos, contudo, que da propulsão de fazer algo novo levando mais longe a vocação omnívora das escalas balcânicas que ordenam as inspirações dos sopros, ainda não nos desengastaram do corpo a sensação de que se cumpre mais programa do se que expande uma aventura, ressaltando ainda a natureza compósita das intenções cuja latitude propalada fica aquém dos mapas divisados.
Nesse sentido, o concerto do casamenteiro frenético Ivo Papasov resulta bem esclarecedor do que são as veras possibilidades de alargar o espectro do que num jogo harmónico, no espartilho de uma escala, cabe. Com a sua Wedding Band, Papasov operou um jogo de anca algo surpreendente para quem esperaria o festival balcânico do costume. Ainda que com um som por vezes aparentemente algo depauperado, e com excrescência de sintetizador roubado no tempo de 1970’s, face a, por exemplo, o seu belo registo «Balcanology», a música de Papasov pareceu instalar-se muito mais numa terra de ninguém, de descompromisso temático, em que a digressão improvisativa assumiu papel preponderante, apagando tanto o compromisso temático quanto o enraízamento cultural. Apenas a espaços um intervalo de sons, um jogo harmónico, traziam à memória a herança cigana, permanecendo o resto do tempo o clarinete de Papasov numa busca indeterminada de um tom, de um oratório, mas retendo-se apenas no fluxo do som. Nem alegre, nem triste, nem encantatório, nem desolador, Papasov ilustrou porventura a busca de um músico de si, entre as clausuras fáceis que certas tipologias de garantias feitas oferecem. Um concerto inconcluso, em aberto, deixando a ponderação de que vias se podem ainda trilhar, sem assentar no facilitismo de uma fórmula de registos já assinalados e fechados. Cuidamos, contudo, que não seja este o repertório que Papasov ande a levar para as bodas búlgaras, não se lhe suma o sustento…
Mariem Hassan surgiu como exemplar da crescente miscigenação de linguagem a partir da qual se conforma em alguma medida o momento de mercantilização do que seja world music, em que já não se trata propriamente de recuperar tradições “perdidas”, muitas vezes embonecando-as para consumo internacional, ou captando-os no seu mais suposto depurado insulamento como comprovativo de autenticidade. Sucede que a autenticidade nestes termos de ingenuidade antropológica é conceito equívocado de raiz, apenas alimentado pela distância social e cultural que supõe o outro como bloco monolítico de especificidade. A música de Hassan surge pois “autenticamente” como manifesto saharauí de exílio, com mais que significantes cheiros de similitude com os vizinhos Tinariwen (sem a entrega pura à fruição), propulsão de homecoming blues por agrestes e toscas guitarras eléctricas, à mistura com o toque de vocalizações e percursões e passos de dança, vá, digamo-lo, tradicionais, mas provavelmente também já non troppo. De arestas pouco limadas, é mais uma vez da sua crua vontade de dizer que se alimenta a sua entrega.
Já o concerto de Tony Allen mostrou, como rezava o programa do festival, o “Sancho Pança” do afrobeat em domínio seguro do seu idioma, ainda que esvaído das promessas já esfumadas de aventura. É sabido que as revoluções se cristalizam, mas apesar de tudo, para continuação de um programa musical, não se nega competência solista à proposta de Allen, com algum vigor episódico, extraindo a produtividade de um ritmo incessante alimentado a fanfarra de sopros a partir de uma simples linha de guitarra (a despeito do seu muito fraquinho portador) ou baixo. O contágio gingante do afrobeat persistiu pois a ser de nostálgica lei: só não se jura que uma aparelhagem não surtisse o mesmo efeito na face sensaborona do que se (não) moveu no palco (saudades de Fela).
Por óbvios propósitos de ligação, deixámos para último então o final dos concertos do Castelo, quando a batera de Tony Allen reaparece com o herdeiro sanguíneo de Fela Kuti, Seun Kuti, seguindo mais a papel químico as passadas do progenitor do que o meio-irmão Femi. É de puro revivalismo que se trata, com Seun revisitando praticamente todos os signos expressivos que fizeram o portento de Fela, a que não é estranho obviamente o facto de encabeçar os Egypt 80 do pai. Como tal, dos riffs dos sopros, ritmos percutidos ao exaurir de um corpo incansável, aos tiques simbólicos, nas roupas das mocinhas a darem uma graça coral em corpos descascados, na corporalidade estrebuchante de Seun peito rapidamente ao léu ora pois, nas invectivas e fácies ao desafio da multidão a tentar inflamar quem está é interessado em pular e não a reagir a pavlovianismos não esperados, tudo se organiza como uma celebração do idioma de Fela, sem outras mais-valias que as que já habitavam nessa linguagem de cruzamentos contagiantes, que só nesse mérito genésico ainda cumpre a exortação do vigor dos membros, agora requentada (o cansaço com a prolongada duração do concerto sendo disso indicador). Por aí, a simultaneidade do fogo de artifício com labaredas mesmo atrás do palco deu o toque necessário para se aquecer um pouquinho mais a imaginação rememorada daquele fulgor de uma modernidade transplantada para uma ideia de savana.
Notas finais: a bancada da VGM cumpriu mais uma vez com proficiência e razoabilidade no preçário a apresentação de uma amostra digna de “músicas do mundo”. As encruzilhadas que, para nós, este, conquanto insubstituível na programação, festival, começou este ano a apresentar na sua conformação social, em termos de público, organização (incluindo a talvez suave, mas ainda assim escusada politização da abertura do evento – deixem as boas obras falar por si...) e cartaz, terão que ser claramente afrontadas, e esperemos que a primazia de um cartaz impermeável ao forrobodó de romarias de roullottes, borrachóns, convidados de honra e marcadores de presença, missangas e tribos nómadas com a sempre fiel companhia canina, a compôr a metade zombie ou alienada da audiência, cumpra com a justa tradição e nome que o festival já conquistou – daí à benigna auto-selecção social do público, espera-se, também será um passo (ou dois...). Poder-nos-ão chamar pessimistas por concebermos que a visita aguardada a Sines para o ano que vem possa ser questionada pelo que destas encruzilhadas resulta, mas simbolicamente há provas de inquietação irrefutáveis: este ano apenas meia-dúzia de talos de hortelã-da-ribeira (ou poejo?) (não) perfumavam o “tapete” de ervas disseminado pelo chão do Castelo. Para escusar a acusação, concedamos uma frincha de esperança de que fosse o remanescente do todo maioritariamente já empregue nas sopas de cação... »