Não me dou bem com polémicas, particularmente com escribas que aprecio. Presumia que o comic relief do post anterior evitasse mazelas, mas suponho que do lado da recepção tal possa legitimamente ser interpretado como mera cobardia retórica. Nestas coisas, uma palavra, um tom ambíguo bastam, e não terei cuidado suficientemente de evitar a possibilidade de personalização(que não era a intenção, apenas acordei para a discussão com os seus textos, e neles vislumbrei matérias não questionadas). Precisamente por isso, deixo apenas umas notas concretas sobre a matéria:
- a picardia da pulga, é de facto uma picardia, que se ajustava ao argumento, não a uma sua qualquer reivindicação explícita de autoridade. Contudo, a pulguinha de Hooke, para lá de um marcador temático, assinala a familiaridade do autor com a área da biologia, investindo-o, por definição, com autoridade credencial, critério que outros consideraram quasi-excludente nesta discussão (it's really not all about you). Mas não deixou de ser na base da neutralidade científica (aqui metonimizada pela estatística) que pretendeu ancorar a validade os seus argumentos (digo eu). Claro que só leitores mais aturados ou fiéis o saberão biólogo, mas aí, essa é condição pela qual não encontro grandes razões para me vitimizar, ainda hoje.
- assinala em mim uma retórica de vitimização e anti-homofóbica. Não recordo ter-me reivindicado ou encarnado vítima e/ou afiliado de nada, e não entro em discussões racionais com declarações de interesses (preconceito iluminista). Poderá a sua semiologia estar mais afinada que a minha. Se assim não fosse, esse seu descartar de certos argumentos soaria a, chamemos-lhe, retórica de vitimização invertida, óptima muleta de desconsideração e menorização argumentativa de outrém, como irredimivelmente refém de fidelidades grupais e interesses individuais. Seria bastante desadequado para a pretensão de argumentar racionalmente, ainda que o interlocutor não valha o esforço. Quanto a isso, e ao mais, seria o último a fazê-lo sentir-se obrigado a dar-me troco: não pretendi forçar argumentos inanes com a pressão de qualquer righteous indignation (era mesmo comic relief). Se foi essa a sua impressão, o que tem a fazer é, logicamente, ignorar-me à discrição.
- se efectivamente tivesse encarreirado numa vitimização, e discussão de explicitamente hidden agendas discriminatórias, teria pegado à cabeça na, aí perdoe, triste "graçola" do último parágrafo do seu primeiro post sobre o assunto, equacionando jocosamente (partilhamos pelo menos o problema do comic relief), em termos paralelos, a homossexualidade e, lá está, uma plêiade de comportamentos de risco - se o Vasco Barreto verifica com inteira justeza que nada de novo eu disse sobre grupos e comportamentos de risco (era chato não estar a fazer render pensamento inovador para lá deste pardieiro), a sua piada sugere que, mesmo em repeat, ainda não se ouviu é falar o suficiente sobre a matéria.
- já agora, porque se estou aqui só pelo desporto, não estou aqui só pelo desporto, uma nota sobre a questão da toxicodependência, que não tinha aflorado, mas vi-o empregar na resposta ao Bruno. A questão da exclusão de toxicodependentes da doação de sangue é certamente discutível, mas parece-me conter matizes menos problemáticos que a exclusão de homossexuais. Em primeiro lugar, estou em crer que o critério concreto de exclusão se prende com drogas injectáveis, não toxicodependência em geral. Em segundo lugar, presume-se que esteja comummente associada à toxicodependência, ao fim de determinado tempo, a degradação de algumas funções cerebrais. Presumo que a capacidade de exercer um juízo de memória e consciência sobre a adopção de comportamentos de riscos (o esquecimento de uma partilha de agulhas em situação de ressaca) pode arguivelmente ser suspeita comprometida. Se agora quiser argumentar o compromisso das funções cerebrais na homossexualidade, é consigo. Já agora, ainda que não seja comigo, não posso deixar de achar curiosa a sua invocação do "então e os toxicodependentes?" para uma discussão centrada na exclusão de homossexuais. Faz-me lembrar, parcialmente, um vago paralelo com as palavras rasantes de alguém, rezando «Noto também que faz parte da retórica anti-homofóbica inverter as posições (colocar os heterossexuais no lugar dos homossexuais, como grupo observado em vez de grupo que observa) mas neste caso concreto não faz muito sentido».
- em termos de argumentos, se ainda contar, uma precisão: o seu, na eventualidade de o ter percebido, consistia em considerar a comparação das prevalências estatísticas da infecção por HIV entre população homossexual e heterossexual, boa ciência para ajuizar da validade de exclusão de dadores homossexuais caso haja risco estatisticamente acrescido associado a esse colectivo estatisticamente construído. A questão que pretendi aflorar (pretensões leva-as o vento) estava a montante: saber se a homossexualidade, enquanto forma não inequívoca de categorização dos indivíduos (dos seus actos objectivos? da sua auto-identificação?...), assente estatisticamente em estimativas, e no entanto assumida como categoria "natural", é à partida uma boa variável de correlação com comportamentos de risco, na linha da causalidade directa da infecção; e se a sua aplicação como critério de exclusão num sistema de selecção estruturalmente falível, porque parcialmente assente na auto-exclusão, seria proficiente - e isto estritamente para efeitos de saúde pública. Não repetirei porque opino, sem autoridade (não estudei empiricamente a matéria), não só que não, mas que pode ser contraproducente (sem entrar sequer na questão tida colateral do reforço social de estereótipos e suas consequências, que as tem, como o provável acréscimo dos fenómenos de marginalização e exposição a, cof, situações de risco) - acrescento apenas que a inclusão da homossexualidade possivelmente alargaria as malhas da triagem, não o inverso, enquanto chapéu de comportamentos menos específico e como tal menos susceptível de auto-identificação, que a concretitude da inquirição de variáveis directas de risco (ainda que a mesma também não seja matéria simples). Mas se passou ao largo da sua inquietação com a saúde pública, certamente não passava de frescura de antropo-sociologia.
- ainda a respeito das debilidades da engenharia social do dispositivo de triagem (para mim, a questão sensata de saúde pública), e da correlativa redundância da inclusão da homossexualidade enquanto categoria de auto-exclusão, deixo-lhe as contradições da sua pena, para que meça, e reflicta mais relaxadamente, pelas palavras próprias, o aquém, na sua posição, do rigor de uma regressão linear: «Infelizmente, não podemos fazer com que o sistema dependa do juízo que cada um faz dos seus actos.»; «A verdade é que, em muitos casos, dar sangue ou não é uma questão que o indivíduo deve resolver com a sua consciência.». Em que ficamos?
- anular a relevância de um questionamento dizendo que se trata de um mero cliché ideológico não combina francamente bem consigo. Se o único critério para aceitar a exclusão ou não de homossexuais como dadores é a comparação estatística da prevalência do HIV entre homossexuais e heterossexuais, não percebo (o que não equivale a sugeri-lo, atenção) porque é que, cientificamente (já socialmente, pode argumentar o breakdown dos stocks), o critério não é operatório para ambas as populações: something's missing. Explicar essa diferenciação, parece-me aqui a coisa "científica" a fazer. É tão simples e tão não-cassete-programática quanto isso.
- explicar essa diferenciação consequencial na aplicação de um mesmo critério a duas populações diversas, dizendo que isso se deve ao HIV ter-se expandido originalmente a partir da população homossexual, é não só absolutamente nebuloso para a minha limitada cognição, como implica sugerir que o seu argumento estava colocado numa perspectiva histórica. Sejamos honestos: só com muito revisionismo seria o caso. Logo por essa razão, não lhe podia ter assacado intenções moralistas (a última citação não lhe dizia respeito) - paremos de brincar às vítimas. Mas como ninguém é tão nerd para andar feito catatua a repetir factos à toa, convenhamos que introduzir um facto qualquer num contexto discursivo é feito em função do poder argumentativo que para uma posição determinada desloca. Em relação à invocação do facto no contexto desta discussão, se não quer retirar consequências de proporções bíblicas, parece-me que o sensato é acordar que o facto não veio aqui fazer nada (a menos que se quisesse partir para a discussão histórica - e mesmo aí, a questão não era tão linear, mas era igualmente improcedente, pelo que me fico).
- assinalo a reiteração em loop da minha falta de originalidade (não o sabia critério) argumentativa, incluindo a discussão emanada do seu texto no 5 dias como origem de algumas das ideias que reproduzi. Como seu leitor (there's the bitchy ironic victim again), e do blog em questão, já o tinha realmente lido, mas as considerações que daí me surgiram, teci-as a seu tempo. Vejo que lhe passaram ao lado, e good for you: mais do mesmo. Em nome, quanto mais não seja, da reciprocidade, mesmo com 99% de certeza que não lhe interessarão pevas, aqui ficam