sábado, 30 de setembro de 2006

Tecnofilia (actualizado)

Mais um dia e mais uma vitória da pragmática empirista até a máquina de zeros e uns dar o berro: já descobri a pólvora de pôr a grafonola num post. Claro que não adianta de nada, porque nem sequer consigo voltar a entrar no servidor, pelo que será Shostakovich forever.
Mas as filias são o que são, pelo que compulsivamente deitei mão a outra opção que me havia sido sinalizada e daí anexei a alguns posts nos arquivos do olvido uns auxiliares auditivos, concebendo que daí o meu arrumar desgovernado de palavras resulte mais legível, ou mais risível (I'll go with the second).
Aos jovens vorazes do passado caquético a quem possa interessar o esgravatar arqueológico, os posts audivelmente recauchutados do momento são: sobre o Syd Barrett, o Arthur Lee, e mais umas associações mais ou menos a despropósito.
(e está visto que nem no meio dos bits a necrofilia podia faltar...)

Adenda em jeito de cruzar o Rubicão: mais um dia e (vá, digam comigo) mais uma vitória. Desta feita, conseguindo retornar ao servidor para uploadar(?!) música para o blog, a razão prática teve depois que batalhar com a escusa da própria razão informática (contida nos avisos do Blogger) em aceitar os ditames da minha intrépida empresa (e a Sara, com a rara gentileza, que tanto me agracia, de quem não pede dízimo e dá conselho mesmo aos tolos que se escusam ao pedido, vejo agora que confirma que o meu ímpeto rebelde contra o Blogger era mesmo a solução para pôr o ficheiro de som num post* - e só não cometo a pretensa gentileza de dizer que o descobri pelo exclusivo da sua palavra porque, 1. almas gentis não carecem de elogios fabricados, que apenas maculam por entre os claramente tão devidos, razão pela qual não poderia deixar de os mencionar 2. sou mais orgulhoso que galanteador (o orgulho pode permanecer, o galanteio fenece à vista da minha fuça), 3. o meu irmão jogava no 48 K o School Daze onde o bufo de serviço começava as frases delatoras com "Sir, I cannot tell a lie" e apanhei a mania psicótica, pelo menos hoje, 4. e em boa verdade foi a minha verve autonomista que me valeu um oh se lisonjeiro "That's my man!" - pelo que não terei que cobiçar em frustração uma maquia dos seus 15 MB. Não me escusarei contudo às mais que devidas muchas muchas gracias pelo gesto. É claro que podia ter estado simplesmente calado, mas com clamorosa visibilidade se denota que a minha compulsão verbal não deixa e o elogio da prestabilidade não tornaria razoável).
Portanto, contra toda a razoabilidade de "quem não sabe não faz", finalmente consegui pôr, justificadamente em jeito de glória, para (estou certo) o gáudio incontido de todos nós, em ficheiro de som a música Primeiro de Maio a acompanhar o post que havia (à data) uh postado sobre a notabilíssima canção do Chico e do Milton, a trespassar a formatação ideológica: escrevi na altura qualquer coisa sobre suspensão lânguida e quase ominosa. Ainda creio ser bem isso, mas faltava-me a materialização metafórica exacta daquela atmosfera quase líquida. Bastava-me ter prestado mais atenção ao delírio da última estrofe: a atmosfera da canção é de suspensão uterina, é o que é.
Oiçam, é o meu o conselho (e dou muito poucos - mentira).
Ora bardamerda, como só duas pessoas é que se deram ao trabalho de ler isto, comem mas é todos (os três, portanto) com a canção: viva o autostart (por um dia) e viva a minha pequena ditadura voluntária e consequentemente prestes a ficar exangue.

* e já agora acrescentemos à solução que, pelo menos na minha pragmática, precisei de seleccionar o código html (que saquei vendo o seu post em view html no Microsoft Frontpage)que põe o ficheiro de som no post e tirar-lhe a formatação com o botãozinho em forma de borracha na barra de funções da escrita de posts.

To move within a frame 2 (and "lets see how the paradox flies")

A minha política e concepção reticentes de aniversários e felicitações bloguistas, já a explanei, e desse pudor já exerci, mas se me falha novamente a constância, para além do gosto que o blog em questão inspira, é porque sempre a nomenclatura que o encima me recorda que, por afinidade electiva com esta imagem, «Seta Despedida» seria um dos nomes sob os quais não desdenharia acostar-me.
As razões estão à vista (e pelo menos numa instância à autora não são estranhas). As felicitações ficam-no também.

sexta-feira, 29 de setembro de 2006

Elogio da razão prática

Estava aqui a pensar se teria algum conseguimento biográfico para menorizar, mas o verbo não se aplica à minha sumamente rasteira narrativa.
Por isso recomecemos em registo de obtusa projecção (como convém): tivera eu escrito a Crítica da Razão Pura, tivera eu descoberto a pólvora, duvido que houvera ocasião para me inchar mais ufano.
Não sei nada teórico de Internet, html - parece que o empreguei, mas sigo sem imaginar o que seja - e, não obstante, na esplendorosa ignorância que torna cada sucesso um golpe de asa (e por esse vento segue bolinando a minha auto-estima), consegui pôr música aqui no pedaço (como devem ter notado, porque vo-la trompeteei sem aviso, e já justifico).
É verdade que a auto-congratulação não colhe em substanciar-se por si só, e não o teria conseguido sem o trilho divisado (para ligações netcabo) por Sara (que me perdoe a familiaridade, e "é generosa", certamente, mas como sou mocito campónio tímido e cabeçudo, se ela tinha explicado, caramba, não ia fazer-me desistente assinino(?) às 114 primeiras dificuldades, mesmo implicando ter que se seguir uma directa para realizar o trabalho que devia ter realizado nas horas que perdi com esta merda), a quem estou grato pela peculiar sageza de explanar um mapa mas obrigando(-me) a solucionar pragmaticamente os engulhos imprevistos ou não mapeados. Não será bem ensinar a pescar, mas talvez incentivar a intrujar o pescador para me entregar mais uma truta (descartando a leitura pérfida que a metáfora congrega) .
Contudo (parte de angariação indevida para outrém), internautas inocentes que queiram enveredar pelo mesmo caminho, cuidem que, afora os problemas que primeiro tive que resolver com a ligação de internet, a simplicidade das operações enunciadas requer assinalável espírito de desenrasca para resolver (e, no trilho enunciado, uma ligação de internet que tenha um servidor para criação de uma página pessoal, embora haja outras hipóteses). O melhor é mesmo prestarem devida (ó yes) vassalagem a Sara, otherwise, se forem nabos como eu, muito penarão (e sem certeza dos resultados a que chegarão: por exemplo, eu tão garboso no meu espelho mental do momento, por alguma razão que me escapa - I had, and have, to remain a dumbass somehow: keeping lowered expectations, you know the drill - só consegui pôr a grafonola no template e não num post).
Como pela primeira vez em muito tempo (desde que resolvi o bicudo problema da prateleira da máquina de lavar louça que não fechava porque estava um centímetro deslocada do encaixe) não caibo em mim de vaidade (not that there isn't room), comei com o ficheiro de som nos ouvidos logo a abrir, e se não gostam carregam no stop e já vão com muita sorte. Afinal, até sou internauta para saber que já há trampa demais nos arrabaldes para que a nossa indolência se dê ao trabalho de querer saber o que é bom para a saúde, pelo que a disponibilidade para o mundo pode muitas vezes já só residir na surpresa de um in your face; e, mais importante, já há muito que se faz questão de não facilitar o acesso a este pardieiro de feeble-minded weaklings (e assim se irá cumprindo o projecto que poderá voltar a pôr a minha razão prática inebriada com o éter do seu engenho: alienar todos os meus leitores - já estive mais longe... E pensando que tal implica que logicamente não haja medida de insucesso que não seja legível como sucesso, pelo menos neste reduto de subjectivização mais controlada fico a ganhar-me em todas as frentes, e, logicamente, o elogio da razão pura devém o conseguimento que se segue).
Acho que já chega de me passar a mão pelo pêlo. Pelo menos metaforicamente.
Self-deprecation and laments of myself will return shortly (até também já não me poder ler à frente - já estive mais longe...)

terça-feira, 26 de setembro de 2006

A tragédia moderna do indivíduo enquanto compositor - pelo centenário de Shostakovich

«A ideia de vanguarda pode, em termos lógicos, dar-se mal com a pós-modernidade. Mas no receituário histórico que até a esse pôr de pantanas guiou os presumíveis destinos da humanidade, quem do seu beneplácito abandalhado não colheu segue com legado atolado nas presuntivas vias ascendentes de progresso.
Contudo, os criadores podem embarcar com outra fatalidade contemporânea que é a dos juízos morais absolutos (note-se, absolutos) sobre a acção individual em contextos históricos particulares na sensibilidade política hodierna (convocando quase inevitavelmente um anacronismo não só epistemica como moralmente desajustado).
Shostakovich, na comemoração do seu centenário, é claramente enquadrado

nesse duplo viés largamente constitutivo dos
cânones estéticos. Tal torna-o precisamente um exemplo de charneira dos bloqueamentos e contradições intestinas do juízo estético na edificação do cânone, concepção que pós-modernamente, não nos equivoquemos, segue fulcral na condução da memória historificada.
O que parece ser notório nesse caso, é como o fincar do juízo estético nesses dois patamares críticos sucede em falhar aquilo que faz a singularidade estética de uma voz. Como se situá-la numa matriz de justificação fosse a operação de entendimento estético supremo, a despeito da compreensão da sua matriz de criação, condição daquela singularidade.
A voz de Shostakovich tem, nesses dois planos, sido porventura a mais profundamente polémica. No plano da estética teleológica, não se lhe reconhecendo abordagens da lógica composicional desafiantes do mapa já cartografado pela herança, nas suas criações de maior visibilidade, do sinfonismo romântico, e nem sequer aprofundando novas correntes "disponíveis" a partir das primeiras décadas do século XX, como o dodecafonismo e o serialismo. Dir-se-ia quase, ao ler muitos comentários que se têm produzido a propósito da efeméride, “quem não é atonal, não brinca”. No entanto, fora casos notórios, raros se negam a atribuir fulgor impressivo e original a vários opus da sua produção. A ideia construída de "obra" e de "criador", enquanto entidades homogeneizadas capazes de criar um ícone para a sequenciação de uma linhagem teleológica parece pois ser uma lacuna para a tranquila "reabilitação" de um legado musical.
Contudo, curiosamente, esse facto pode em larga medida ser precisamente lido em articulação com os juízos morais produzidos a propósito da vivência e posicionamento de Shostakovich no contexto histórico da URSS (e é sintomático tal surgir finda a anterior e bem mais translúcida, o que não obstou ser bem zarolha em muitos casos, condenação mais ou menos simbólico, incluindo alguns saneamentos germânicos, dos colaboradores musicais com o nazismo – alguém tergiversou no lamento recente de Schwarzkopf à conta do cartão do partido nacional-socialista?). Denota-se o quanto o juízo moral do indivíduo enquanto criador se torna em casos constitutivamente equívocos matéria de validação de todo o seu legado, não nos termos do quanto o contexto é o húmus de entendimento da criação, mas nos termos conotativos de a criação, independentemente da sua lógica criativa, ser manchada pela absoluta classificação moral do indivíduo. Ora, precisamente Shostakovich representa das mais absolutas negações dessa operação, porquanto o indivíduo se desvela irredutível, na opacidade do contexto que condiciona a sua acção e ao entendimento pretensamente depurado do que seja a sua “vera” subjectividade, à taxonomia geralmente dicotómica do colaborante-opositor. A discussão contemporânea desse posicionamento de Shostakovich enquanto compositor oficial do regime soviético partilha involuntariamente do absurdo gogoliano, no qual, aliás, se banhou. Um pouco de senso weberiano, de entendimento da compreensão enquanto pensar a racionalidade dos indivíduos in situ, bastaria para perceber que uma pretensa essencialidade subjectiva de Shostakovich no enquadramento do regime soviético não poderá ser apreendida – em matéria de facto tanto se lhe conhecem os mais declarados fretes musicais e humilhações públicas (e a integração no aparelho ideológico e até simbolicamente burocrático do regime), como os gestos estéticos temerários, por vezes com claro (até tornado real nas suas consequências) risco político.
A única coisa que se torna óbvia, precisamente em termos estéticos, é que a sua obra brota nas formas díspares que se lhe conhecem (em género e qualidade) em profunda imbricação com as solicitações, possibilidades e condicionamentos do contexto social em que opera. Toda a sua estética não é uma crónica desse contexto mas a crónica das possibilidades e viés expressivos de um compositor nesse contexto. Ora, tal matriz social de composição é aquilo que faz a singularidade e a "anormalidade" do seu corpo de obra, e torna qualquer juízo teleológico do que deveria ou poderia ser um caminho esteticamente inovador inerentemente contraditório, pois pressupõe a taxonomia individualista do génio capacitado para organizar uma nova expressão a partir dos idiomas instalados. O "formalismo burguês" de que foi acusado pelo poder soviético, juntamente com outros compositores contemporâneos, na sua subjugação à funcionalidade da propaganda ideológica, é a ilustração eloquente dos limites constitutivos da sua voz.
Quer pelas teleologias estéticas, quer pelas avalizações morais de um indivíduo, é frustrante perceber o quanto se conforma um quadro que por duas vias deixa escapar precisamente a singularidade de uma obra enquanto criação individual necessariamente situada. Não particularmente quando essa localização lhe impõe uma lógica instrumental (seja para contrariar ou servir um condicionamento: e as encomendas de regime podem, no seu claro primarismo contrastante com as possibilidades de composição que outras obras outorgam ao criador, no mesmo gesto, ironicamente, cumprir aquela dupla lógica, de acatar e ironizar a subjugação política), mas nos espaços de liberdade que pôde conceber ou apenas sugerir no mais íntimo reflexo do subjectivo que é a criação (e torna os seus constrangimentos explícitos algo do domínio da violentação íntima): ouvindo, por exemplo, o terceiro quarteto de cordas, desde o primeiro compasso que nos assalta a ponto de dilaceração normalizada (forma de sobrevivência subjectiva à plena opressão social), por vezes num esgar rasgado, um retrato de uma verdadeira tragédia moderna do indivíduo: não a tragédia imprevista ou ominosa dos Antigos encharcada em sentido; não a tragédia simbólica dos povos às costas da redenção colectiva; mas a mais terrível tragédia moderna do homem criado na clausura fechada uma ordem absoluta que destila da sua omnipresença a necessidade constante do cálculo dos gestos e das palavras quando se consegue olhá-la à distância no seu interior, a tragédia normalizada da ordem disciplinar a regular na distância inacessível do poder a vida dos homens indiferenciados. O panorama subjectivo desta criação é de uma obsidiante caminhada, inelutável, para um dramatismo sem pausa, apenas mais marcado ou distendido, em que os adagios são a degustação dos passados lacerados ou dos futuros negados, e os allegros anunciações grotescas do estiolar de qualquer grata emoção humana, numa só constante agonia que não se concede picos ou acalmias, e é sim o descritor do quanto um corpo pode nesse estado vislumbrar o único horizonte em que lhe é dado conceber habitar a vida. Ressalta pois sintomático da condição de criação singular de semelhante obra, o veicular desta agonia como a condição ordinária da vida, ressaltando tão claramente o seu drama, sem a construção narrativa do drama: não se trata de conhecer o drama numa vida, enfrentá-lo, superá-lo ou sucumbir; trata-se de o drama cobrir como névoa perene tudo o que conhecemos, e devir a atmosfera em que persistimos.
Os juízos estéticos fora deste quadro humano são de considerável cegueira histórica (e a estética é também uma categoria histórica).
Os juízos morais imponderadamente distanciados da compreensão do que é um corpo socializado no medo e ameaça entranhados de todos os dias de todos os olhares comuns são de considerável arrogância humana.
Sem consagrações mecanicistas, mas também sem a crítica (no fundo) acrítica atreita ao juízo desincorporado emanando de equívoca necessidade de absolutos ideológicos, talvez seja tempo de celebrar Shostakovich, ouvindo na circunstância histórica da estética da sua voz um singularmente expressivo feito humano.»

O último reduto do estímulo estético

Andam por aí uns moçoilos de quem se vai dizendo basto bem (e já quase basta serem islandeses para tal), que são os Sigur Rós. Levado na onda, adquiri já em promoção (costuma ser bom sinal) o seu último álbum, «Takk...», dizem que mais aparentado à presumível obra-prima (salvo seja) dos rapazes. Ora, a muito quente (para não correr risco de afrontar possíveis fãs e salvar face para o caso sempre demasiado provável de vir a dedicar-lhe loas daqui a uns anos), só se me oferece bradar que este é dos discos mais nulos, vácuos e (requisito fundamental) visceralmente irritantes que ouvi em muito tempo. Eterealidades inanes, crescendos de eficiência onanista tal como definida pelo César das Neves e a voz que mais apetece esganiçar desde que o insuportável e histriónico careca presunçoso das super-abóboras ou coisa que o valha saiu de primeira cena.
Tal maledicência, contudo, não é auto-justificada (não é que continuais a presumir de mim o pior, pá?...). Na verdade, o que os moços me ilustraram foi serem exemplar que sugere uma categoria de música insuportável que se distingue da quantidade industrial de lixo execrável que todos os dias atulha os escaparates, e que impele a conceder-lhes alguma forma de reconhecimento: é que esta gente ao menos esforça-se para dar gosto aturado e motivação à implicância. Não estou para pensar em quais os fundamentos desse mérito, mas é certamente um certo grau de achievement que faz bem a diferença, extrairem de nós um juízo que ore repimpado "mas que bela merda!".

Paperjoke 2

O «Sol», confirmei em exemplar alheio, é efectivamente, pelo menos nesta sua incepção, um Expresso recauchutado para consumo mais populista, e em com boa parte dos homens de confiança(?) do arquitecto (chamei-lhe engenheiro da última vez... admissão de ignorância e penitência) Saraiva.
O jornal em si é um objecto algo trapalhão, amontoando secções como se fosse um diário, o que é descalabro estilístico e funcional num semanário. O populismo tem-te não caias, e mesmo amadorismo, ressuma no grafismo atamancado de jornal com aquele je-ne-sais-quoi que o torna perfeito para entregar umas folhas ao esvoaçar balnear, na organização temática (a tenebrosa secção "mundo real", ou a proliferação de mini-frivolidades e "conselhos"), inclusive nos títulos: pérolas de escola jornalística clássica, eficaz e assepticamente descritivas, como «Assim é fácil pagar a taxa» (sobre taxas moderadoras - o governo agradecerá o entusiasmo) ou «Cinema gay para todos».
Se até os diários aceitáveis dedicam suplementos semanais ao domínio cultural, o «Sol» empacota numas poucas páginas mal-amanhadas do próprio jornal umas referências anódinas e a pontapé a filmes (apenas um "crítico", meia dúzia de linhas para meia dúzia de filmes, sistema de classificação com símbolos metereológicos... "Sol", estão a ver? hein? hein?) e livros. Considerando o corpulento caderno cultural do Expresso que Saraiva deixou para trás, a opção de público-alvo e orientação editorial do jornal fica escarrapachada.
Já as revistas de ambos os semanários estão ao mesmo nível de crónica social e historietas pseudo-edificantes ou pseudo-sociológicas arrancadas ao fundo do tacho (com o pormenor curioso de terem ambas as revistas tido por director um homem que só me lembro de escrever uma coluna fascinante do Expresso, desde há anos, dedicada à crónica de espaços de lazer nocturnos, com fotos de socialite ao lado, para quarentões com o gosto retrógrado de sorver Johnnie Walkers óne da rockes, esbugalhados pelas luzes estroboscópicas e com danos no ouvido interno de tanto enfardarem no canal auditivo o Chris de Blurgh), mas o Expresso é capaz de aqui levar a medalha da semana com a sua sessão de fotos de corpo inteiro da Floribella, a fugir da camisa-de-forças de proto-ícone-sei-lá-de-que-estádio-psico-evolutivo-primevo-piagetiano para a de would-be-petite-gamine-pseudo-fatalle(?!!). Para "Única", "Tabú" e meio... (não, não sei, nem é para saber o que isso quer dizer...).
Cereja no topo do bolo de lama, a exibir a rasteirice que tanto nos apraz, impressa no canto superior do Sol está a boca à competição com Dvd's grátes pela antiga morada do Expresso (qu'isto a concorrência não está para afabilidades de nem tão velhas lealdades e fair-play): «Um Jornal que vale por si - Este semanário não oferece brindes nem faz promoções». Entretanto, acusando por defeito a boca, uns consumidores resmoneavam na tabacaria cá do bairro perante a justificação da casa de aparentemente o Expresso ter produzido/distribuído(?) menos Dvd's que exemplares do jornal, tecnicamente intrujando a expectativa dos consumidores ávidos de borlas.
Surpresa, surpresa, o Público também parece não querer perder a onda da visibilidade conferida pelas lutas intestinas na imprensa do pardieiro nacional, e dedica no Mil-Folhas uma página inteira a um romance de que só falta escrever tintim por tintim ser uma retinta merda, que não é senão a terceira prosa ficcional do arquitecto Saraiva. Honra seja feita, a crítica é hilariante.
É facto que com material deste, é escusado comentador, mas torna-se fácil compreender como um fenómeno de organização de discurso impresso em jornal como "As Farpas" queirosianas e de Ramalho Ortigão nunca poderiam ter lugar no jornalismo dos nossos dias. As farpas hodiernas estão cravadas na subtileza gestionária que permite a sua disseminação em qualquer domínio da política editorial.
It's all downhill with a laugh, me boys...

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

Os tempos esperados

Assentava Setembro. Juravam os telejornais, visionados nas salas acolchoadas com naprons, pela desregulação climatérica, na face da indiferença alimentada dos tempos incorporados. O aprazado na estabilidade dos ciclos seguia tergiversando na face da incomportável desestruturação da permanência do futuro. Na aurora seguinte começaram os trabalhadores rurais a estrumar os solos ao largo da minha janela. Não tardaram a emergir as melgas, a fazer de meu corpo seu pasto. É tão bom sentirmo-nos úteis.

sábado, 16 de setembro de 2006

Humm... gaja boa


«Geralmente, neste quarto álbum dos Caravan, são diagnosticados os sinais do seu declínio (na verdade, o seguinte “For girls who grow plump in the night”, na sua relativa regressividade estilística, pode ser, ele sim, descoroçoante), ao escaparem a uma suposta matriz mais pop, da qual, de facto, eram os representantes cimeiros no jazzistico universo progressivo de Canterbury nos anos de 1970’s, enquanto o lado mais profundamente enraízado no jazz ficou entregue, com bastante mais radicalidade e relevância, aos Soft Machine, desde o incontornável e incomparável monólito “Third”.
Contudo, e não é só pelo gosto de recuperar discos menos amados que a história deixou meio tombados em caixotes indignos que o dizemos, este álbum é na verdade um representante não propriamente menosprezável da versão Canterbury dos Caravan, e não cuidamos que seja propriamente inferior ao seu incensado “In the Land of Pink and Grey”.
Aquilo que muitos desdenham como um desvio para o jazz, dadas as mudanças de formação que levaram à incorporação de Steve Miller (antes nos Delivery) no piano eléctrico, substituindo os teclados mais encorpados de Dave Sinclair (atraído por Robert Wyatt para a sumamente heterodoxa empresa dos Matching Mole), é um desvio bem conseguido, enriquecendo de forma plenamente integrada os mimoseios pop de Pye Hastings, e o remanescente mais devedor da veia tradicional dos Caravan está a um nível nada desmerecedor. Um aceno à heterodoxia da própria escola pode ser intuído até em algumas intervenções dos sopros, ou de guitarra wah wah, que dão um sabor quase funky a certos espaços (escrito soa mal mas, surpresa, resulta), a acrescer à rítmica cativante da fluidez do disco.
A abertura com a faixa título exibe a manutenção do programa lúdico da particular versão de Canterbury dos Caravan, quer no tom, quer nos jogos rítmicos e harmónicos bem sucedidos, como no intermezzo que dará lugar à secção de improvisação. A longa faixa que se segue, «Nothing at All», seria a que denunciaria a suposta daninha influência de Miller nos destinos da banda, mas é na verdade um excelente naco de jazz-rock, não particularmente ambicioso, mas nada possidónio, contendo aliás uma das mais suculentas malhas de baixo que a história (não) registou. Aqui se confirma, desde logo, um dado curioso para um álbum menosprezado: o reputadíssimo Richard Sinclair, pelo seu peso na diversidade de formações que compuseram a paisagem sonora canterburiana, tem neste suposto registo menor uma das suas melhores prestações instrumentais. O baixo neste registo está num swing admirável, imparável e contagioso de fio a pavio, sobressaindo glorioso e reinante na mistura final, swinging all the way no aliciar dos quadris renitentes.
As três pequenas cançonetas, a parte menor do repertório tradicional dos Caravan, têm, é verdade, como habitual, um registo carregado de sacarina, pelo que serão um acquired taste (francamente, it’s not my cup of tea), face ao qual as derivas jazzisticas de Miller são no mínimo benvindas pelo acréscimo de estímulo sonoro que lhes outorgam. “Aristocracy” é a mais saborosa, em parte, mais uma vez, também pelo espaço para o swing de Sinclair.
Já a suite a la Caravan, “The Love In Your Eye”, que representa a mais forte ligação com a tradição sonora do agrupamento, é de facto uma digna sucessora. Os cândidos temas entrelaçados, em plena sucessão dinâmica entre secções de improvisação, são irrepreensíveis, conseguindo conceder à peça toda uma continuidade mais que escorreita; mas, no cantinho do melómano, guardamos um assento especial para ouvir o soberbo solo do grande Jimmy Hastings na flauta. Instrumentista central de Canterbury, ainda que geralmente subsumido em colaborações (recorrentes: a malta do burgo sabia que mais-valia ele era) nos sopros de empresas alheias (praticamente todas as que saíram desta escola), este senhor também praticamente rouba a centralidade do disco com esta sua prestação: a dinâmica, a fluidez, a imaginação melódica e o sentido de propósito musical configuram uma prestação que merecia igualmente o seu lugar nos anais.
A reedição disponível em CD deste álbum contém alguns extras que, ao contrário de muitas reedições a incluírem a malta a esforçar piadas e descontracção, a fumar um cigarro ou a praticar as deixas de assédio sexual no ambiente do estúdio, valem a pena, com algumas maquetes de Hastings só a guitarra a quase beneficiarem da redução instrumental em que se quedaram por nunca terem sido gravadas para integrarem o álbum, excepto a final que, com plena produção, não desmerece da linha deste momento dos Caravan, podendo ter com proveito integrado a selecção final do que de facto apareceu no álbum à época, ao invés de uma ou duas das canções que lá chegaram (a última, confessemos, chega a fazer ranger os dentes – mas confiamos que já ouviram falar da função program). Para quem se queira iniciar nas sonoridades canterburianas, pode este ser adequado ponto de partida, embora indubitavelmente o material esteticamente mais sério, desafiante e portentoso se deva procurar em outros lugares, pelo que os aventurosos talvez se possam atirar logo a tais vôos. Mas para muitos ouvidos, um pouco de suave pedagogia nunca fez mal, e um pouco de sensibilidade pop ainda menos. E para esses, há aqui material que pode suscitar o hábito auditivo que alimente novas buscas do que de mais extraordinário saiu dessa sedutora cena de Canterbury.
(pedimos desculpa pelo muito que gostamos de dizer Canterbury)
(Canterbury)
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Paperjoke

O visionário engenheiro Saraiva, José António (não duvidem que o Nobel está mesmo a caminho), rumando contra o escárnio desavisado de tolos que atribuíam a causas inapreensíveis o aparente desnorte que há mais anos que é polido contar vinha incrementando ao Expresso, quando chegou ao culminar de aturado plano de deixar o semanário espojado no anedotário nacional (lembro com inefável estima nostálgica a metade da revista do jornal empastada com as fotos de corpo inteiro de infindos items do guarda-roupa da princesa Diana), obviamente, num golpe de asa imprevisto (who's laughing now?) saltou da barca para abrir seu novo estaminé.
O Expresso, aflito como quem não quer a coisa, segue senda maioritariamente descartável, muda de formato, baixa o preço, e por dois meses prodigaliza às massas Dvd's à borla com aquilo que no Quarteto se enfaixa nos cartazes como "filme de qualidade".
É verdade que há anos que a imprensa portuguesa faz questão de rumar em plano inclinado, mas é louvável, e por isso lhes estou grato, encenarem a derrapagem como se de uma bela comédia se tratasse.

Papermeter

Os sistemas sociais de interdependência têm destas coisas, só não esperava descobrir-me o centro nevrálgico de um. Eu explico. Graças a uma saudosa ana de amsterdam que soía visitar-me, suscitando inclusive dissertação sobre personagem buarqueano, tal sagrado nome ficou associado a este resto de queimada. Por tal facto se possibilitou (mas não explicava) que estranhamente, esta semana, começassem a surgir referenciados no sitemeter do pedaço entradas em busca pelo nome ana de amsterdam. Ora, eis que folheando a revista do Expresso da semana passada, em pleno hábito de não me deter numa só página (bom, houve um momento em que estaquei para verificar se no marketing desesperado do semanário já tinha mesmo entrado o estilo jornalístico de compincha de café, ao ler a frase em destaque "os nova-iorquianos são rijos"), me deparo com uma slim coluna de Rita Ferro Rodrigues, aparentemente dedicada à visita e referenciação de blogs. E o nome do blog do dia era, pois é, ana de amsterdam. Por estas vias (aren't the ways of society cute?) se configura este blog como involuntário indicador por excelência da repercussão social da dita coluna e respectivo sistema de referenciação. A Rita Ferro Rodrigues não se preocupe, pois, que poderá ter em tempo real os dados estatísticos necessários para tal avaliação, e não precisa nada de agradecer, uma jóia no valor de 1250 euros, mais 50 por cada pedido de informação (e estou a ser mais que benemérito, considerando as tabelas do INE) será mais que suficiente.
Apenas convém lembrar que não é por minha culpa que até agora it doesn't look that good, girl...

(simultaneamente têm cá aparecido convivas (para lá das hordas regulares que me salivam as bordas do monitor à cata de vídeos gratuitos de coroas transando, que vai não vai ainda será o estandarte orgulhoso do estaminé) à busca de informação sobre se o Carlos Paião terá sido enterrado vivo - não estava a par - , mas para esse paralelo e paranormal fenómeno de busca ainda não tenho explicação, e para não inquietar a Rita Ferro Rodrigues quanto aos possíveis efeitos temáticos da sua escrita não irei sobre-interpretar a correlação)

Bargain freak

O CD com o primeiro acto de uma como que vagamente encenação rock do David Thomas, com uma Pale Orchestra que inclui o Chris Cutler(!!!) e o Hammill(!!!!!) (e na versão americana parece que teve o Frank Black!! - they just freakin' had to meet...), por 1,49 € ?!?!?!?!

Perdoarão a frivolidade de ventosa de montras em saldos (which I am), mas para, cansado da dissimulação retórica, ser honesto, e o deixar transpirar, a caça à pechincha é realmente a única coisa that still makes me tick. Ficam pois informados da fixação temática que poderão não consultar nesta página no futuro próximo (who knows how far).

sexta-feira, 8 de setembro de 2006

A virtude inconsequente

Leio na bula de um antibiótico ao acaso que necessitaria de uma dose menor do dito para curar gonorreia do que a que uso tomar para problemas a priori teoricamente menores.
É quando uma criatura está em baixo que lhe lembram que, com os mesmos custos pessoais, a sua vida podia ser bem mais recreativa.

3 - Quanto ao capítulo «Medici»

só se cuida dizer que «that joke isn't funny anymore». Mas no humor dorido de certos sobreviventes (why not?), Moretti sabe isso muito bem...

2 - Só se pode revisitar Stromboli não o fazendo

«- Há qualquer coisa de hipnótico, uma antiga ligação entre...
não te vires.
Não te vires!
Um grupo de americanos no abrigo.
Preciso que me faças um favor. Eu tenho vergonha.
Queria saber se a Sally Spectra disse ou não ao marido que espera um filho....
«[Da novela The Bold and the] Beautiful»...
porque na América já vão mais adiantados....
E também o que a Stephanie soube depois de ter posto um microfone em casa da nova mulher do ex-marido.»

1 - As duas faces de um corpo

Não, não... não é a teoria inane de civilização-de-overthinkers-on-futile-matters de que só temos um bom perfil, absolutamente irrelevante e redundante para quem só tens dois maus perfis, e a quem os ditos de you-can-improve-your-life-no-matter-how-rotten-miserable-it-is só cumprem função de gerador de impropérios.
É uma questão infinitamente mais intrigante e instigante.
Ao rever, nos Dvd's-do-Público-faz-de-conta-que-não-para-vender-na-Fnac, a entrada do Moretti nos bittersweet forties no seu Caro Diario (para a antologia dos anti-clichés de burgueses ex-esquerdistas "o que fizemos da nossa juventude?" fica, claro, a grande line «não, vocês diziam coisas parvas e tornaram-se feios, eu dizia coisas certas e tornei-me um quarentão esplêndido»), dizia eu, reparei epidermicamente num facto supreendente, a exigir elaboração.

Dei-me conta de que gosto muito do Moretti de frente...
e gosto muito de Moretti de trás (e este plano, com a dita sua mulher Silvia, é também uma belíssima esquiva declaração de amor)...
mas de maneira completamente diferente.

Isso, é notável (por exemplo, reminiscências keatoneanas(?), só emanam de trás). Ora conseguir configurar(-se) um personagem diferente dependendo apenas do lado de que se olha, não é coisa de somenos. Podeis vós, claro, pensar que isso é óbvio, crendo ser o vosso traseiro perfeitamente distinto do vosso facies. Francamente, eu não teria assim tantas certezas (mas posso estar a generalizar da minha experiência pessoal...)
Não é coisa pequena, a plurivocalidade de todos os ângulos da nossa postura vital, o corpo investido de sentido diverso nas várias contingências da sua apreensão, condição de permanente fonte de seductio. Verdade seja dita (não sendo eu dado a alienar pessoas por fetichismos corporais variegados), o sacana faz-me gostar dele (veja-se lá) até de perfil. E isso sim, ao invés dos corpos disciplinados para o descasque do Verão, é uma forma maior de plenitude corpórea...

Explicai-de-ze-me

Comprei há tempos uns Dvd's (coisa rara) decentemente baratos em promoção na Fnac (ainda lá estão, já um euro mais caros, que mercado tão volátil...), que não são senão os Dvd's da colecção Y do Público, com uns quantos menos euros em cima para escoar o stock. Mas por alguma razão comercial ou juridicamente complexíssima que me escapa, têm uns mal postados nacos de fita cola amarela atamancada no plástico a tapar as partes da capa que identificam a proveniência dos Dvd's como sendo da quinta do senhor José Manuel Fernandes.
Não é que não esteja habituado a, e me importe de, ser tomado por parvo. Faz parte das regras da maioria das arenas em que me movo, e eu sou indolente. Mas faz-me basta confusão, nos mais pequeninos exemplos, não conseguir reter aquela mínima barragem à falência apática no jogo social, que é, simplesmente, perceber... porquê??
Não seria Locke que dizia que era da mínima decência na vida em sociedade pelo menos fazerem-nos de parvos por algo de jeito? Detestaria pensar (não que faça diferença para lá disso), que já o fazem só para alimentar o hábito...