O que fiz dos anos (and counting) em que não mais degustei medronhos?...
(a agreste capa de espinhosa tez a equivocar quanto à suculenta e húmida têmpera da qual é constitutiva - não há casca nesta espantosa oferenda - de pequeno fruto, em tamanho ainda não da indignidade substancial da baga, porventura o mais singelo fruto a merecer a inteireza da designação singular antes da colectivização da degustação - comem-se uvas, cerejas, mas só se come um medronho, ainda que se comam mais, é um na dignidade de cada vez, não na voracidade da sequência plural antecipada. Sim, a enganosa capa espinhosa a compensar para o desvio dos néscios a generosidade da aberta declaração de madureza na inequívoca coloração da bondade frutícola. Suponho, medronho, que medroso (ou sim, declinação produtiva de similitudes, merdoso) não fiz por te merecer. Ameaça-me com essa cara de mau, dizendo: isto terá que mudar. Far-me-ás bom desejo (provavelmente o único possível))
Diospiros (uma dúzia, não mais) do tamanho de clementinas, mal amadurados, colhidos na esperança de a temperatura da cozinha mais a Sul lhes ser favorável à síntese do pouco mais de doçura que abata o sarro (não seria inédito). Ou seja, que comecem literalmente apodrecer e sejam degustados no preciso momento antes que a decadência se faça gustativamente irreparável. Prazeres sofridos são os mais queridos? Estas oferendas não as trocaria.
Se for dada a oportunidade (os dois ingredientes não se tendem a misturar no panorama do consumo cinematográfico), ir ver um Manoel de Oliveira ao cinema e comer pipocas na sala.
Cinema português em centros comerciais comportando múltiplas salas de cinema (eu sei, há uma terminologia qualquer, mas não a conheço e não lhe dou intimidades): é raro, mas acontece, e quando acontece perto de mim fraquejo no comodismo de quedar o visionamento mais perto da residência, em vez de deslocar-me ao resquício de uma sala com brio. Sessão da meia-noite, como (quase) sempre, a minimizar risco de cabeçudos (nos dois sentidos) e pipocas (mesmo na eventual expectativa de selecção de práticas sociais pelo objecto de visionamento). Pela segunda vez (já acontecera com o «Noite Escura» e agora com «O Fatalista»), entro e saio da sala sozinho, a película desenrolada, fotograma a fotograma, em sessão exclusiva, só para mim. Estranho privilégio me outorga triste panorama.
Ao fim de quatro posts, precisamente porque ao fim de quatro posts, se percebe porque é que, talvez arriscando a validação prática da sua metodologia moral, Santo Atanásio exemplifica o seu princípio com matéria de fornicação - a moral exige, para subsistitir na pachorra da sua dissertação, substância suculenta e tentadora.
Qual era a graça de esgrimir contra pecados de chacha? A moral pode ser muitas coisas, mas nunca lhe conveio ser sensaborona.
Claro que isto não me pode ser seriamente proposicionalmente imputado, quando, parafraseando, talking about morality is just a thing you do when you're bored.
(o que implica uma espécie de presumida auto-suficiência moral que também é problemática, claro, que talvez na sua circunscrição negativa e circunstancial de se transmutar discurso basicamente na face de pés que pisam, com o que pisar implica de delimitação moral, dedos que preza, principalmente dedos que pense deverem ser prezados na condição de não serem de pés que pisem dedos outros, pretenda ser menos daninha, mas não prosseguiremos a temática, pelo menos agora - I'm not THAT bored)
Curioso como na afirmação do princípio do olhar alheio se sustenta a tentada arte de vigilância moral de si de Santo Atanásio. Tal parece implicar uma insuficiência do indivíduo para dar conta do seu estatuto moral nos termos da sua acção. Contudo, é evidente que existem olhares irmanados no pecado (como no exemplo de não se fornicar sozinho, presumindo, para o argumento, tal como pecado). O que implicará que, a pôr-se a censura do olhar alheio na nossa própria vigilância, é quanto à qualidade desse olhar que se pode ater a firmação moral. O «não fornicaríamos diante de testemunhas» (e note-se como fica bem ao escriba o emprego da primeira pessoa do plural), implica pois uma noção particular de testemunha, como figura isenta da cooptação no acto pecador. Mas tal figura só pode exercer tal papel (mesmo que passivo, pelo mera presença) de instigador moral, na medida em que as categorias que mapeiam os actos em torno do pecado se encontrem reconhecidas e validadas pelo pecador. Invertem-se pois os termos da composição da vigilância de si. Se a autovigilância não se basta na sustentação moral, a hetero-vigilância tampouco (na sua medida de não-coacção directa, física, claro - o que foi pouco o caso, mas é o que agora interessa). O problema que finalmente se coloca, é que esta gestão da moral pressupõe uma validade universal de acesso e reconhecimento dos seres nos seus ditames. É essa condição que foi perdida com fim das várias unicidades que pretendemos dar aos mundos. A noção possível de moral só pode ser no espectro dessa ambição hoje uma concepção relativa, compósita e negociada das morais que diferentes criaturas vão envergando em diferentes circunscrições da vida. É isto que os proselitas se recusam a compreender. É isto que no mais pacífico fechamento da crença que se crê razão, instaura os muros e as fachadas, sem toque de humano no cruzamento. É isto que, por não ter mais que fazer, hoje penso lamentar.
«Eis uma coisa a observar para se ter a certeza de não pecar. Que cada um de nós note e escreva as acções e os movimentos da nossa alma, como que para no-los dar mutuamente a conhecer e que estejamos certos que, por vergonha de sermos conhecidos, deixaremos de pecar e de trazer no coração o que quer que seja de perverso. Pois quem consente ser visto quando peca, e após ter pecado, não prefere mentir para ocultar a sua falta? Não fornicaríamos diante de testemunhas.» (Santo Atanásio, Vida e conduta de nosso pai Santo António)
« O que é que se faz quando se extingue os Pixies (e ressurreições não são para aqui chamadas)? Obviamente, reformamo-nos com uma pensão vitalícia da Unesco por contribuição incalculável para o património da humanidade. Mas como a música da entidade dúplice “Frank “Black” Francis” não tende para o óbvio, achou que era hora de dar as voltas ao nome e propor ao mundo outra forma de música que não arrancada ao núcleo do planeta que todos pisamos, mas não vemos como singularidade espacial. A partir daí, claro, segue-se o opróbrio, porque os declarados génios não podem ser menores. Ora, sucede que ser cativo do passado é triste forma de vida e, como tal, o renascido Frank Black espeta-nos o dedo médio na face e prova que existe regressão à juventude: arma-se das suas paixões musicais de adolescente e põe-se a fazer canções que não pretendem conter, cada uma, um inaudito universo sonoro de significado - porque não é vida isto, de ser sempiternamente um cometa inaudito, o filho que redime toda a linhagem do rock donde se pariu a si próprio (porque este filho só pode ser de autogestação – por muita genética musical que haja a espremer paternidades).
Ora, depois disto dir-se-á que só se pode continuar a ouvir os restos de inspiração deste homem(será?) por fidelidade canina. Ora, uma pinóia. O pequeno duende voltou a criar numa rodela de substâncias de registo sonoro um novo planeta (sim, não é descobrir, é criar)? Não. O duende anafado voltou a criar canções que mais criatura alguma engendraria com um objecto musical de seis cordas encostado às protuberâncias digestivas? Oh yes, baby!
A prova de que a fidelidade canina não é questão, é que qualquer bicho com tímpanos, este vosso incluído, percebe que material para descartar é coisa que enxameia qualquer disco do senhor Black. Mas não há um onde não haja momentos onde nos salte ao cérebro uma de duas: “Hum...” (como quem tropeça no que pode ser a descoberta de uma adição para a tabela de elementos) ou “O que é que foi isto!?” (como quem viu de relance – porque as canções podem não chegar a durar dois minutos - marcianos a surfar nas nuvens – a metáfora fácil, ora pois, não se ambiciona mais para o que escapa a qualquer apreensão e fechamento intelectual, senão ficar calado – hum, why didn’t you?...).
O primeiro álbum homónimo, é verdade, por razões que não podemos explicar senão a proximidade ao corpo defunto dos pequenos seres mágicos, conseguimos ouvir, conseguimos apreciar, não conseguimos distância, não conseguimos avaliar. Bizarro. Obra-prima, não é. Singular, é adjectivo que não lhe escapa.
“Teenager of the Year” é provavelmente o mais estimulante, fragmentário e sugestivo, com pistas para todas as direcções a cada faixa (são 22, por isso vejam a balbúrdia que não vai naquela cabecinha), desde o revivalista ao “benvindos ao planeta Black”.
“Pistolero” é talvez o mais coerente deles todos (os posteriores ainda não nos caíram nas mãos – o senhor esteve em fúria produtiva que não dá para acompanhar), em que o que é para descartar não chega a ofender, vindo de quem vem (ao contrário do que pode acontecer nos prévios), e vocifera rockalhadas discretamente épicas e epicamente escorreitas como quem boceja displicente ao anúncio da morte do rock – esse problema não é seu.
Ah, pois, isto era sobre o “Cult of Ray”: o mais abertamente esquizóide: lado 1 (vamos fingir que continua a haver lados... é categoria muito heurística) quase todo dispensável; lado 2, obrigado señor Black.
Abre com a promissora “The Marsist”, com as densas harmonias blackianas, a distorção da surf guitar a levantar a poeira lunar, e a estranheza deste homem querer berrar até pôr a máscara alienígena na lua a piscar o olho (o que é possível, pois este é o senhor do berro mais imaculado e significante que qualquer corda vocal emitiu, a envergonhar a banalidade da rotina metaleira). Depois, bla bla bla, o homem tem direito a viver a segunda adolescência, a escrever punk digerível, a transbordar indulgência com as costuras harmónicas para que o straight rock ao menos pareça mal cosido, até a ensaiar baladas rock (ugh!) felizmente ainda com harmonias adiposas e demasiadas palavras para se levar a sério.
E depois, e depois... primeiro, in your face, “Mosh, don’t pass the guy”, energia punk gostosa, e pensamos, “Hum... será que isto promete?” - oh! doce profecia. Surpreenda-nos mais uma vez señor Black: ora aí têm, meus caros ... “kicked in the taco”! Qual “Hum…”, qual carapuça, isto é “Uau!”: o adolescente regredido tem memória do homem que foi e, não deixando de ser adolescente, ainda sabe fazer canções que dispensam mais que dois minutos, repetições, refrões e secções, são um naco de música orgânico que só precisa de fluir do princípio para o fim sem regras de escola auditiva a ditar o caminho.. A “Dance War”, que está no lado 2, também é desopilante, mas se trocasse de lugar com a “The Marsist” tornava a divisão espacial do disco perfeita (embora seja de elogiar a perversidade de nos titilar ao ínicio e fazer-nos esperar pelo lado 2 para o prato forte que, afinal, sim, anunciava mesmo – wicked little fat man...). O resto segue a mesma bitola sem bitola do homem que lá fez o esforço diletante para nos lembrar que há vida em Marte, mesmo quando já encerrou a estação interespacial. “The Creature Crawling” a ecoar sismicamente os seus passos trôpegos na placidez autista dos nossos quintais. “The Cult of Ray”, em homenagem não surpreendente, vinda do alienófilo de que vem, a Ray Bradbury, é das sucessões mais conseguidas de riffs desopilantes a cutucar-nos nos quatro costados, que consegue a proeza de no final da sua infatigável jornada instalar a contemplação do que escondem as estrelas. “The Adventure and the Resolution” a ensaiar caminhos não trilhados (e não repetidos), nem pelo próprio, com material sonoro que não sonhava com tais travessias de abstracção sonora (principalmente nas condições quase pré-históricas de gravação a que o cavalheiro é atreito). “The Last Stand of Shazeb Andleeb”, a ensaiar um hino em surdina (a voz a escorrer no leito do baixo – oh Frank, afinal és também um sedutor...). A redenção é doce, para mais quando a sentimos como nossa (a não aceitar que se desista deste cavalheiro).
Ah, e havia aqui pelo meio um tal Lyle Workman a tocar lead guitar, que, caro Frank, como é que deixou partir? Não é um Joey Santiago (et pour cause...) a desenhar nebulosas de som a partir de notações de hieróglifos, mas no seu classicismo melódico era dos poucos guitarristas rock a saber parir um solo que vai a algum lado, ainda para mais só tendo direito a 15 segundos para o efeito, numa canção a la Black.
E pergunta-se, como quem denuncia his master’s voice: e como raio é que um álbum com um lado descartável vale o cacau de o comprar e a pachorra de escrever demasiado sobre o que o envolve? Bom... há perguntas que não merecem resposta.
Subia umas largas escadas numa praça pública, e no instante em que passo por um velhote na mesma ascensão, ele estaca para se dirigir a um grupo de moças que desciam, apontando-lhes que as calças brancas que envergavam era frias para esta altura do ano.
A solidão não se compadece das convenções sociais.
As moças, encavacadas, abrandaram, tartamudeando um "sim" "pois", e seguiram meio desconcertadas o seu caminho.
As convenções sociais não se compadecem da solidão.
(pergunto-me que proporção das desenvolturas da blogosfera não são variações, em novas convenções, sobre um velho tema)
Porque a coisa foi mesmo de peso na formulação de um substrato de nacionalismo perigoso no ideário político do candidato Cavaco Silva, veja-se, por quem percebe da poda, esta explanação da concepção de direito de sangue que, efectivamente, sustenta proposições, não explícitas na forma mas inequívocas na substância, sobre concepções de nacionalidade como as que referimos no post anterior relativamente à resposta de Cavaco, no debate com Louçã, sobre os critérios de regulação da atribuição da nacionalidade portuguesa a imigrantes.
Cavaco como Presidente da República está claramente tomado na discursividade pública como um facto consumado. O que implica que todas as leituras da factualidade da sua campanha e prestação como candidato presidencial são vergadas à inevitabilidade de o senhor vir a ocupar a cadeira. O que se torna mais aberrante quando esse senhor que todos já se controlam para não se equivocarem a designar como sr. Presidente manifesta todas as qualidades para não ser um candidato sequer com perfil para levar a sério enquanto candidato. Só por cegueira das fatalidades anunciadas (Cavaco Presidente) é que ninguém apontou com a devida clareza que Cavaco saiu simplesmente cilindrado do debate com Louçã. Foi aliás dos debates mais humilhantes para um candidato presidencial a que já assisti. E isto não tanto ou somente pela competência retórica de Louçã (fora um desvio populista inacreditável e perfeitamente dissonante no final), mas pelo próprio vácuo da sua concepção política anunciada, e pelos substractos não assumidos de viés políticos que assomam a espaços na sua discursividade, que nem sempre se atém à ausência de conteúdos que tão voluntariosamente lhe pretende imprimir.
Desde logo, estamos perante um candidato que se recusa pronunciar-se sobre as matérias porque não quer condicionar à partida o seu perfil e as expectativas dos partidos quando fôr ocupar o cargo. Ou seja, Cavaco quer ser como que o presente que a actuação governamental e o seu Portugal verão o que contém quando tiverem que a abrir em Belém (não vale abrir antes do menino nascer...). Deve ser para garantir a eleição atiçando a curiosidade dos eleitores (votar no senhor só para ver afinal o que é que ele faz - o seu departamento de marketing deve andar a rever muito Hitchcock). Estamos depois perante um candidato que faz do seu currículo de economista e de experiência governativa o fiel da validação do seu exercício das competências políticas: o governo precisaria de alguém afinado com os problemas do país, tal como eles são definidos hoje em dia (em linguagem e fechamento economicista), para poder dialogar de forma responsável. Ora, o cavalheiro com esse currículo mete os pés pelas mãos no debate no que toca à questão fulcral (fulcral) da Segurança Social dizendo apenas que se necessita de novos estudos (quando já foram realizados e apresentados, disponíveis) sobre o impacto das medidas avulsas que nos últimos anos foram tomadas nesse domínio. Facto confirmado nos comentários ao debate na SIC Notícias, mas que não causam mais comentário senão o acharem "estranho" Cavaco desconhecer tal facto. A teleologia a funcionar: o homem vai ser presidente, pelo que face ao fait accompli esta argolada não pode minar o perfil do garantido futuro Presidente. É apenas estranho. Escandaloso e inconcebível, nunca. Finalmente, estamos perante um candidato que,no seu pretenso vácuo ideológico, deixa escapar demasiado lastro, formulado (devido certamente à sua não-elaboração ideológica) de forma demasiado daninha, para ser ignorado como inconsequente. A forma como enfatiza a palavra "portuguesa", duas vezes, na frase em que contesta a facilidade com que se discute a atribuição da nacionalidade portuguesa (e repete enchendo a boca, "portuguesa"), a imigrantes, ou mais especificamente a filhos de imigrantes (em política de jus soli) é o bolo-rei ideológico com que escancarou as entranhas nacionalistas neste debate, culminando com a cereja em cima do bolo que foi sustentar a sua dúvida, por exemplo, no perigo de os portugueses virem a ficar em minoria em Portugal (para além do "perigo" hilariante de antecipar mais de 10 milhões de imigrantes virem suplantar a proporção da população "portuguesa" no país, aquela formulação, por mera lógica linguística, define que para o cavalheiro os estrangeiros a quem é atribuída a nacionalidade portuguesa não passam verdadeiramente a ser "portugueses" - caso para perguntar, então a atribuição de nacionalidade significa o quê? Isto é a política de sangue na atribuição da nacionalidade o mais clarinha possível. Simplesmente, não nos deixemos enganar, em formulação de circunstância, não assumida, como tudo neste senhor). Ao que acrescenta que a questão da nacionalidade nem seria tão importante como questões concretas como o acesso à saúde, à educação, etc. Mas o senhor julga porventura que a atribuição da nacionalidade é uma frivolidade simbólica nacional que só serve para as pessoas poderem passar a andar com uma bandeirinha de Portugal pespegada na lapela? Que não implica precisamente a aquisição de uma panóplia de direitos enquanto cidadãos de um país?
Embora o que nos interesse seja relevar a perversa teleologia da "certamente" futura presidência cavaquista, Louçã, que esteve muito bem (independentemente da concordância das suas posições políticas, e obviamente mais liberto, ainda não plenamente, também não sejamos ingénuos quanto à liberdade discursiva dos pequenos partidos, pela natureza da sua candidatura a explicitá-las sem entraves e subterfúgios), convenhamos, borrou a pintura de forma inacreditável com o recurso às cordas sensíveis da "história verídica" do "menino imigrante". Num debate em que com invulgar justeza e clareza se posicionou face ao que lhe foi colocado, e pôs em xeque os inúmeros buracos da figura e da matriz política de Cavaco Silva, não se percebe como é que insere de forma, perfeitamente controlada e estratégica, esse apelo demagógico. Se vai começar a entrar por aí (e tudo indica que sim), a credibilidade que meritoriamente na sua posição partidária e política difícil ia conseguindo sustentar, merece preocupação grave e dúvida quanto ao seu substrato político também. Louçã, pelos seus pergaminhos, melhor que ninguém, deve saber que o discurso não é inconsequente. Se daí se retirarem consequências sérias, como se deve tirar relativamente a Cavaco, não se queixe: claramente ele as pediu.
Cavaco, só numa democracia esvaída de reflexividade pública séria, que determina teleologicamente por constrangimentos exclusivamente extra-situacionais a validade e probabilidade relativa dos resultados esperados de uma eleição, é que depois deste debate pode ser levado a sério sequer como candidato. Comparando o facto futuro consumado com o facto presente em construção, numa democracia séria isto seria uma anedota. Mas numa democracia séria não há factos consumados destes. O silogismo é fácil de completar.
Diospiros maduros no ponto, colhidos do diospireiro na horta, derramando-se, descaindo as defesas do sarro, ofertando-se na doce e dissoluta textura, entrecortada na surpresa de firmes gomos gelatinosos.
(não há diospiros, Diospiros, de mercado. Cada diospireiro que morre na paisagem anormalizada é um mundo puro de sabor desaparecido. Não sei se procurarei reencontrá-los entre essas obscenas reproduções, quando me estiverem interditos. Sei que na raridade desse pleno e fugaz encanto perdido me apetecia viajar os 180 quilómetros que me separam da árvore para ver se haveria um para partilhar com quem padece do mesmo sortilégio).
(o diospiro, Diospiro, bendito seja, continua a ser delicioso para lá do ponto, mesmo demasiado passado, mesmo desfeito: às vezes é a única forma de ultrapassar o sarro)
(diospiro, tem no Brasil, chama-se caqui. Alguém tem obrigação de comê-los por mim)
Anónimo (que espero me perdoe a indiscrição...) inquiria se o disco que mencionava no post «Afinidades Electivas», e que referia em comentário ter emprestado para nunca mais, seria porventura uma "raridade", que não pudesse ser (re-)adquirido numa "loja da especialidade". Respondendo no devido registo chão, como que impenetrável por figuras de estilo: não, não é com certeza de todo raro. Estará numa qualquer Fnac a 8 euros. Mas o MEU disco era aquele exemplar. Substituí-lo seria qualquer coisa como comodificar excessivamente aquela pertença inefável, e no mesmo passo materializaria a descrença na possibilidade humana de arrependimento e reparação. Ora, não seria decente da minha parte fechar de forma demasiado displicente a porta à redenção alheia. E enquanto a privação não se torna insuportável (felizmente, muitas voltas já ele tinha na agulha até se gravar em cilindro de superfície carnal), a saudade e a memória (juntas) constituem outra forma de alimento de que se aprende a usufruir (em certos fins, é o que nos resta; o mais seria até insuportável).
Dedicada leitora orientava-me a face para o facto de comentar mais do que postar, condição bizarra para blogger que se preze ou que não se preze. Mas tal condição não é de estranhar, e sugere aliás assumir certa intermutabilidade entre blog e caixa de comentários (ainda que na gestão complexa das subterrâneas correntes). Faria certamente sentido para esta espacialidade personificada. Raras vezes me tive em boa conta a sós comigo. Só em interacção senti por vezes algo de insuspeito, internamente, a se validar. Assumi sempre protagonismo mais digno em secundárias funções que como actor de moto próprio. Experimentei diversas formas de realização e em todas as que me exigiam o primeiro papel ressenti a amarga consciência da aceitável mediocridade que se sabe aquém. Sempre argumentei melhor em diálogo que em solilóquio, sou mais competente a rever produção de outrém que a encabeçar a minha, sei melhor avaliar e apreciar os méritos alheios que alimentar os meus. Não é de espantar que, nessa estiolada produtividade de ser, a minha presença na blogosfera, num espaço em torno de um self constituído, seja confrontado com a ironia de o melhor de mim (e melhor indica só grau, não qualidade) poder estar refundido no acrescido secretismo de caixas de comentários. Vem-me à cabeça em figura de redenção possível o valoroso Ward Bond (e um doce para quem o nome faz tocar os sinos), para supôr que o valor intrínseco dos modestos homens (humanos, vá...) seja algo a que só os grandes se alcandoram a resgatar (sendo que há duas formas dessa grandeza) . Nesse sentido, pelo menos, não mais valiosa, mas mais rara pérola se fariam.
Desilude-se o crente expectante da absoluta metafísica inspiração. Carece-se também respirar ou ter respirado outros ares para emergirem certos (a Emily não é práqui chamada) caracteres prenhes de desacorrentados sentidos. Não há verbo para a vida sobreposta às águas estagnadas. Curiosa transmutação para sopros que pretenderam outro alcance: o corpo a estiolar nas margens do vácuo assoberbante do ecrã negro.
«A primeira obra dos supremos progressivos Gentle Giant, dos multitalentosos irmãos Schulman e companhia, estreados no vinil em 1970, tende a ser relativamente desconsiderada no seu património. E de facto, para quem produziu incessantemente em menos de uma década títulos indisputados como do mais belo e complexo que neste movimento estético se inscreveu, é difícil não olhar este como um título menor na sequência que os levou até “Interview” em 1976.
Contudo, se os álbuns devem ser vistos numa série de perspectivas contextualizadoras, também devem ser vistos como entidades em si. E, como tal, este contém coisas francamente insubstituíveis para um ouvido dedicado, e lança já pistas bem seguras para o que viria a ser o modus operandi deste combo imbatível. A inicial “Giant” é basicamente um exercício de estilo rítmico, a ensaiar possibilidades, mas de destreza agradável na secção inicial. O mesmo poderá ser dito de “Alucard” (não pensem em dicionário, pensem em anagrama), a ensaiar experimentalismos sonoros distorcidos e fantasmáticos que não ficariam como marca sonora dos senhores, pelo que é uma curiosidade revisitar. E depois, bem, depois há a beleza dos melodistas que estes cavalheiros também eram, como se não bastasse a sua supremacia também instrumental, vocal e de composição. Francamente, não se vê que os outros agrupamentos da época pudessem ter outra reacção às suas performances senão “estes gajos até metem nojo!” (talvez seja a pista que faltava para descodificar o seu, ó! de bradar aos céus, insucesso). Ouçam as melodias que iluminam a balada “Funny Ways”, que no desbunde síncopado do seu intermezzo anuncia as mini-sinfonias que fariam as maravilhas sonoras de 4 minutos de álbuns como “Octopus” (o que, considerando a necessidade da maioria das bandas de um lado inteiro de vinil para atingir uma amostra desta complexidade, acrescenta crédito à hipótese “estes gajos metem nojo”); ou a mais que deliciosa canção para quarteto de cordas (não leves a mal, Costello, alguém se lembrou disso primeiro...) “Isn’t it quiet and cold”, com um solo prodigioso no vibrafone (está bem, cordas e mais qualquer coisinha...), que seria presença regular no arsenal destes multi-instrumentistas. Ou ainda o lírico início de “Nothing at all” que, se se estende por nove minutos, é por lá para o meio dar a mão iniciática, mas já irreverente, a um decalque classicista (ninguém é perfeito...), que cedo é devidamente abardinado para descambar num delírio free de percussionista sob speeds e um técnico de mistura drunfado. E se não sabiam da relação entre trovadores medievais e bluesmen, ouçam a progressão central da “Why Not?” (indeed...), que num minuto liga temporalmente distâncias-luz de uns quantos séculos (coisa pouca), e numa progressão brilhante retoma, sem aquelas quebras progressivas, o completely different tema inicial, para culminar num solo bluesy de guitarra bem esgalhado para redimir as aberrantes, infindáveis e insignificantes masturbações sonoras de guitarristas que desconhecem que não é para isso que o braço da guitarra serve (equívoco de consequências graves para audiências, e ainda mais para o instrumentista). É que o cavalheiro com o instrumento nas mãos era um tal Gary Green, que não ficará nas enciclopédias, mas percebia da poda, sabendo que um solo tem que dizer qualquer coisa mais que “olha, agora sem mãos” – não, não é uma piada ao Hendrix, que tocava melhor com os dentes que a maioria com os 10 dedos).
E porque não foi só Zappa que se lembrou de perguntar “does humour belong in music?”, uma versão jocosa em orgão e guitarra marados do hino inglês (é verdade, o Hendrix outra vez, mas juramos que não foi planeado...) é um remate airoso a um álbum que, por si só, é audição mais que recompensadora, e não só premissa do que estava por vir, que, por sinal, atingiria logo um pico no seguinte álbum, e obra-prima, “Acquiring the Taste”, onde revisitam alguns procedimentos estilísticos aqui inaugurados, como, por exemplo, a improvisação de percussões em “The Moon is Down”, ou a angulosa canção para cordas “Black Cat” (que nem são os zénites do álbum, para que não julguem que não foi uma superlativa renovação da linguagem musical, mas só mais do mesmo).
Começava assim um percurso incomparável e deslumbrante de exploração das possibilidades específicas que uma tematização contém, movimento de desenvolvimento musical que estes senhores impulsionariam a inéditos paroxismos formais, numa lógica cada vez mais refinada, internalista e densificada (no espaço e no tempo), em certos momentos a sugerir paralelos sonoros com uma configuração pictórica a la M. C. Escher.
Ah, e já agora, porque não foi só Zappa que se lembrou de perguntar “does humour belong in music?”, atenção ao pequeno teaser de sintetizador que, qual toupeira impertinente, vai escarafunchando pelo disco: só a sua aparição gozona antes da elegância de “Isn’t it quiet and cold?” valeria o preço do álbum. Nem se percebe como é que ainda ninguém se lembrou de o pôr como toque de telemóvel...: bolas, os rapazes eram mesmo visionários... Até mete nojo.»
Assinalou-se dia 2 de Dezembro a milésima execução legal de um ser humano nos Estados Unidos da América (não obstante a honrosa excepção de 12 estados - somente - que não contemplam essa pena no seu sistema legal), desde que a pena de morte foi reinstaurada em 1976. Ao mesmo tempo, chegava à minha caixa de correio uma mensagem de corrente emanada originalmente da secção portuguesa da Amnistia Internacional, com uma carta pré-formatada, para pedir ao governador da California (Schwarzeneger lui-même) clemência (reparem como no mesmo acto se combina a possibilidade de apelo consequente à salvação da carne, e a necessidade de um acto de suposta excepcionalidade benigna e toda-poderosa por parte da autoridade personificada: they do playGod) em face da agendada execução de Stanley Williams. Williams, referido como tendo um percurso de redenção pessoal particularmente meritório em intervenção social pós-encarceramento, é apresentado como um dos casos mais abonatórios para a contestação de tal forma final (eliminando consequentemente a possibilidade do tão "cristão" arrependimento e de minimização e compensação pelos crimes, que por aquém que sejam de todo o acto criminoso, sempre são mais do que o irreparável, infértil, e potencialmente equívoco ceifar de uma vida) de punição (sendo que a percepção da possibilidade dessas "excepcionalidades" à justeza da aplicação da pena de morte poderá nas boas consciências ser matizada pela possibilidade referida e perversa da clemência pessoal do governador).
Não literalmente pelo senhor em si, mas, ainda que de forma relativa, tomando-o como sujeito a forma de punição que rejeito, enquanto ser humano, confrontado com a aceitabilidade social feita realidade política e judicial de seres humanos se confrontarem com ela, lá reenviei, violentando a minha relutância subjectiva e imobilidade corporal a agregações, o mail pré-formatado para o endereço do governador (ainda que, na minha relutância a estes processos de agregação informática, duvidando do sentido disto). Eis que no dia seguinte me deparo com duas respostas na volta do correio: uma primeira, resposta pré-formatada do gabinete do governador a todos os mails que entram, a agradecer a correspondência e a avisar que a resposta podia demorar... E uma segunda, certamente igualmente pré-formatada, "assinada" pela secretária para os assuntos legais do governador, a informar do processo, dos trâmites legais envolvidos na ordem execução e pedido de clemência, e agradecendo muito polidamente a correspondência, garantindo que o governador iria tê-la em conta na tomada de uma decisão. Passado o espanto da eficácia informacional (e não comunicacional) da governação por aquelas bandas, me apercebi de como assim, trocando documentos pré-formatados, polidos e sensatos, se vai esvaindo a discussão da vida e da morte dos homens, de a quem cabe (se a alguém cabe) decidi-la, em que circunstâncias, porque meios (a obscena tecnocracia da morte no seu esplendor). Suponho pois que essa polidez organizada (à qual o realismo organizacional obriga a agregar-se esta estratégia da própria Amnistia Internacional) seja mais uma das vias pelas quais se elabora e mantém a delicada e suave tessitura da civilização, e o estiolar da crítica no realismo político (quando em nomes de outros "valores" "civilizacionais" outros realismos vão sendo alegremente descartados). Pois, na face da civilização, e não rejeitando necessariamente a ideia dela, mas fazendo-a outra, ainda que em comparativamente impotente discurso, só me resta escrever, para me relembrar, que na engrenagem da civilização desses senhores, a pena de morte é, persiste, um pilar de barbárie. Esta sua ornamentação, talvez cumpra importante função social, mas de momento, nestes momentos, só me pode suscitar repulsa.
Duas pessoas que se imiscuíram na ordem dos meus afectos, em modalidades completamente diferentes (uma, a quem me atém dívida de etérea natureza, não sabe da minha existência, tão pouco; a outra pode ser directamente acusada por responsabilidade incitadora do crime público que é esta coisa (blog?!) existir, e que neste dia me vem na distância a uma memória), vim a dada altura a verificar sustentarem o mesmo encanto por um mesmo certo verso entoado por um certo mesmo encantado homem:
«it’s never over, my kingdom for a kiss upon her shoulder».
O tio Goethe, acolitado a fazer cartilha do romantismo, conseguia ser um bocado insuportável. Para dispersão de qualquer bibliófilo que por aqui andasse, devo admitir que o Werther faz parte das minhas irritações subjectivas de estimação (e muitos velhos suicidas endrominados provavelmente me acudiriam nessa inclinação). Agora, não se pode negar que o homem, quando acertava, era em cheio.
Ia o je descansadamente equivocado na faixa do Bus ao descer para o Marquês do Pombal, quando um senhor agente da autoridade em motocicleta passa pela minha esquerda fazendo sinal para me encostar para a faixa correcta. Ao anuir com um aceno e um sorriso de admissão de culpa à chamada de atenção, e deslocando-me para a outra faixa, eis que o agente se posiciona do lado direito do automóvel, e eu, descendo a janela para abrir as margens de comunicação, ouço vociferar o homem do distintivo: «o senhor acha graça, é?!». São tempos e/ou personagens perigosos quando a primeira, epidérmica, interpretação de um sorriso é que ele seja criminoso. Principalmente intérpretes armados. Talvez fosse conveniente pôr antes os psicólogos da polícia de plantão. É que era um problema privado o facto de eu não lidar bem com a autoridade. Masjá indicia um problema público quando a autoridade começa a priori a não lidar bem comigo.
«No afã de classificar as nossas audições, que é outra forma perversa de nos classificar a nós (o problema é que nós também tendemos a enfiar o barrete), surgiu recentemente uma categoria que reza qualquer coisa como new weird america, que seria um repegar meio freak de tradições sonoras folk americanas mais ou menos no mesmo terreno que já havia repegado a americana também há muito poucos anos, mas um pouco menos reconhecivelmente (que é como quem diz, uns fumam charros, outros emulam portadores inspirados de cirroses).
Ora, foramos nós a lembrar-nos e a ter poder de difusão da coisa, e aqueles ficariam antes qualquer coisa como a new orthodox freak america, porque a new weird america ficava para senhores a fazerem coisas como um tal David Thomas. Este senhor, pouco new na idade, cujas qualidades corporais me isentarei de identificar para não o estigmatizar (e porque ele se está nas tintas para elas, logo, nós também), é já de si bastantemente reconhecível como a voz meio demencial entre o delirantemente lúcido e o babado infantilizado que reconhece diáfanas verdades que escapam aos sabidos do mundo (e como tal são desprovidas de valor pragmático) que encabeçava o torpedo new wave (donde o new weird se justificaria) intitulado Pere Ubu.
Entre os opus a solo que foi lançando de forma assaz invisível desponta, em finais de 90, este “Bay City”, que se não é weird bem ofendem o homem porque bem se esforçou. Se a straight rock descarnado “Clouds of you” que inaugura o álbum ainda engana, a faixa a seguir, “White Room”, espécie de arremedo tosco de balada trôpega de guitarra quebrada na ressaca de meia-noite que não deixamos instalar-se porque ainda faltam 6 horas de ebriedade para a madrugada, embalada a clarinete demasiado alto na mistura com melodia decantada aos soluços, instala a dúvida. A partir daí não há dúvida: quando o senhor diz que “nobody lives on the moon”, no fundo confessa que é lá que habita, e que a lua são paisagens incógnitas onde nenhum americano não lá nado pode respirar ou conhecer senão por estranhos intermediários. Eis o estranho intermediário. Por intermédio de crua, básica, mas bizarra instrumentação, para weird efeito, disponibilizada pelos “estrangeiros” que Thomas desencantou encalhados num fiorde como bando de mariachis, canções que não existem surgem demasiado reais na sua fantasmagórica proposição apenas para anunciar a estranheza distante e irredutível.
Ficamos a saber que isto, o que quer que seja, existe, mas não é passível de ser conhecido. Ritmos obsessivos, ritmos requebrados, melodias fragmentadas, não-épicos em ocaso sonoro, não-ritmos, balbuciares e copos quebrados, portas a abrirem apenas para bater, e os passos de ninguém que se anunciam para se evolarem do chão.
Se “Charlotte” nos dá um seio (só um...) para afugentar as incertezas desta música (ou uma varejeira do deserto, não é certo...), logo nos jogam num quarto sebento de motel abandonado sem fímbria de luz para desviar a atenção das perguntas obsessivas que não nos queríamos colocar. E ecoam profecias, senhores, profecias, conjuradas para temermos nova incursão nas terras de outrém-ninguém: se não se inquietam ao som de uma voz de texano louco, desdentado e visionário, que anuncia às criancinhas, nas cadências nonsense métricas e mutantes da brilhante “15 seconds”, que “You'd better close your eyes because in this world/the good things is gonna sink while the bad things rise./Y'all better close yr eyes.”, algo de errado se passa com o vosso sistema nervoso. E após o cataclismo, no resfolegar dos despojos inúteis que chiam, traduz o olhar do homem serenamente louco (porque nada mais se pode ser) na perdição no vazio escaldado: “i fear the worst that worst could be... that everything would be just the way it seems... to be”.
Este álbum é matéria sonora feita terra para dizer que isto existe mas não se alcança, não se entende, é a geografia dos presentes, dos que “got what it takes”, e não há viagem para lá: só os rumores remotos indutores de miragens por um vento malsão.»
O artigo de Vasco Pulido Valente no Público de sexta-feira sobre a não-ordenação de homossexuais não é propriamente exemplo do que atrás se discutia, porque me parece que o tipo de argumentação, que pode validar, de facto, proposições institucionais homofóbicas (ainda que de uma «entidade privada»), deriva mais de uma lógica analítica que caracteriza o autor, do que de uma qualquer motivação homofóbica. E motivações, não convém julgá-las ou apontá-las levianamente. Mas convém ver que possibilidades discursivas se instalam em certos argumentos. E estes interessaram-nos particularmente, porque é neste tipo de retórica realista que muitas vezes intencionalidades homofóbicas se fazem por escudar (mais uma vez, não dizemos que seja, aqui, intencionalmente o caso).
O que move VPV não é a defesa nem a condenação da decisão de Ratzinger. É o insensato da contestação “politicamente correcta” dessa decisão, face à realidade social a que se refere, relativamente à qual essa contestação estaria muito equivocada (e, conceda-se, até pode estar). Argumenta que a proibição da ordenação de padres homossexuais é apenas uma consequência lógica (ou, mais equivocadamente, «reiteração») da doutrina católica sobre a matéria; que a Igreja Católica é uma «entidade privada», como tal liberta para exercer as suas próprias regulamentações internas, como , "quem entra"; e, num tocante momento de compreensão weberiana, pergunta-se «que homossexual precisa de uma igreja que o condena e humilha?».
Quanto a estes argumentos concretos, vejamos: essa proibição não decorre linearmente da doutrina católica, dada a manutenção da castidade e celibato como condição para o exercício do sacerdócio, e dado o facto de lhe ser normativamente inédita. Como tal, essa proibição decorre de uma extensão institucional de uma concepção epistémica e ontologizante, de facto condenatória, da homossexualidade, para um campo onde até agora não se tinha manifestado, por razões precisamente de doutrina, mas provavelmente também práticas (e daí, ao contrário do que acha VPV, a questão da pedofilia, também não é, de todo, de descartar como absurda nesta decisão, já que a Igreja também sabe qualquer coisa de relações públicas: as temporalidades não são só feitas de acaso, e as condições representacionais de associação entre pedofilia e homossexualidade estão aí mais que visíveis e disponíveis, por inválidas que normativamente se diga que sejam). Tal implica que, mesmo sendo a Igreja Católica uma entidade privada, e com um estatuto complexo de relação com a constituição política dos estados onde se insere, no mínimo, não decorre daí que deva ser imune à crítica social, seja ela qual for, nas suas temáticas e fontes de enunciação, quanto mais não seja porque é fonte de proposições culturais que afectam a construcção de imagens e representaçõesque, neste caso, no mínimo, a quem se define/é definido, como homossexual, dizem directamente respeito. O facto de se dever diferenciar juízos de facto e de valor, em linguagem científica, nunca implicou o esvaziar da possibilidade de enquanto cidadãos os indivíduos exprimirem juízos de valor sobre o real. Estivéssemos a falar de etnocentrismo, e a conversa realista seria exactamente a inversa. Quanto a uns certamente masoquistas homossexuais que, vá-se lá perceber, querem pertencer a uma instituição que os estigmatiza, creio que, para um cientista social como VPV, não será difícil perceber que não é só Deus who moves in mysterious ways. Tal como relativamente às mulheres, esta restrição do sacerdócio implica um problema teológico para indivíduos que se reconhecem numa fé (processo que pelas próprias dinâmicas de socialização pode não ter tanto de escolha quanto isso, anulando “eticamente”, face à instituição, o argumento relativamente aos descontentes: «eles se arranjem»), e se vêem impedidos de certas formas de exercício da mesma, principalmente se é teologicamente disputável (internamente aos próprios exegetas oficiais) a base doutrinária para tal. Como entidade privada, e como tal terrena, a Igreja também deve ser considerada como legítimo campo de contestação das suas práticas e doutrinas, ainda que daí não se derivem, ou seja legítimo derivar, outras consequências (como políticas e jurídicas: isso é outra conversa).
Daí o perigo deste tipo de análise pretensamente realista. Aquilo que VPV está essencialmente a contestar não é a natureza dos argumentos anti-discriminatórios avançados, mas o próprio acto de protestar contra o que, na sua análise, é assunto apenas da Igreja (que fica reduzida à sua hierarquia institucional – os fiéis não são tidos nem achados). No desencanto desértico que o tomou, VPV restringe o discurso social válido a um realismo truncado que estiola qualquer margem de crítica face ao que é, assumindo assim uma postura valorativa face à crítica, legitimando a sua postura com base em aparentes juízos de facto. Ora, por muito que se queira desconstruir os termos de uma contestação (e não me parece que tal fosse, nesta argumentação, conseguido), desconstruir a possibilidade dessa contestação é um passo que me parece que se vai tomando, e que conhece abismos pouco aconselháveis. É que também o realismo não se deve exercer levianamente.
As polémicas sobre homossexualidade espoletadas por acontecimentos que assaltam o espaço público tomaram um cariz cíclico. Não estava para me chatear com este último ciclo, mas apercebi-me de um facto preocupante. Tornou-se comum as posições assumida ou implicitamente conservadoras face ao carácter público da vivência social da homossexualidade (desde o plano cultural ao jurídico) tomarem como argumento central das suas contestações às pretensões anti-discriminatórias relativas a tais temáticas, o queixarem-se de que, hoje em dia, com o “politicamente correcto” a permear e vigiar todas as margens do discurso, já não é possível fazer um crítica honesta e descomprometida a qualquer acção ou proposição emanada do universo (seja lá o que isso for) da homossexualidade, sem que tal crítica não seja vilmente censurada pelas boas consciências desse novo e terrível normativo discursivo, que, consta, rezaria qualquer coisa como "nas bichas não se toca" (também não sei lá porque razões: pode ser por medo de outras coisas). Ora, tendo lido o artigo do Miguel Sousa Tavares, sobre o “caso” de Gaia (ou o “caso” do “caso”, para ser exaustivo), e posteriormente auscultando os vários comentários e reacções que se ouviram por essa blogosfera (e outras esferas) fora, tudo por gente que obviamente até tem muitos amigos homossexuais, tive pôr a mão na consciência libertina (cerceando-a) e reconhecer: eles têm razão. Meus caros, culturalmente, a luta contra a discriminação pela orientação sexual dos indivíduos deu alguns (alguns) (em parte formais, em parte informais) frutos para uma vivência mais igualitária dos cidadãos de algumas sociedades democráticas. Mas temos que reconhecer, neste ponto do caminho, que essas conquistas tiveram os seus efeitos perversos (não é jogo de palavras…). Que novas opressões se erigiram com estas pretensões emancipatórias, fazendo vingar as suas dimensões particularistas, e não a igualdade cidadã que supostamente reclamam. Sim, é verdade, meus concidadãos, sob a capa mentirosa da não-discriminação uma nova e mais ignóbil discriminação foi erigida, insidiosa: a discriminação dos homófobos(?). Reparem como as argumentações, neste caso, para criticar a contestação que se fez da suposta discriminação implícita no “caso” (do “caso”), regra geral, têm que se rodear de toda uma série de cautelas, explícitas ou implícitas. Têm que afirmar que fizeram um soul-searching aprofundado para concluírem que não os tinge sentimento homofóbico, e como tal podem pronunciar-se de forma puramente intelectual sobre o caso em questão; ou têm que lançar uma proposição de simpatia face aos, lá aos coisos, os outros, os homo; ou têm que escudar a sua argumentação não na afirmação de valores (pois não se pode “ser contra” os pobres homossexuais), mas no exercício de lógica, política, social e/ou jurídica. Através desta lógica de argumentação, o que se verifica é que os homófobos da nossa praça estão a sofrer agruras retóricas insuportáveis, para poderem defender subtilmente a sua justa causa. Mais ou menos como os nossos artistas anti-fascistas enganavam o lápis-azul, certamente. O que é pior, porque torna a coisa patética, é que they’re not fooling anyone, e gastam nessa operação truncada o capital de seriedade intelectual que podem aplicar produtivamente em outros assuntos em que não tenham que negar o sentimento que não ousa dizer o seu nome (ahhh... senão para o negar, claro). Por isso, pequena (ou grande, parece) massa de gente afinal pseudo-emancipatória, apelo ao vosso sentido civilizacional: deixem-nos sair do armário, e ser assumidos homófobos livremente e em paz. Não é vida decente ter que esconder nas saias da retórica tão sofrido segredo por toda uma existência.
«A minha tristeza não é feita de angústias A minha tristeza não é feita de angústias A minha surpresa A minha surpresa é só feita de fatos De sangue nos olhos e lama nos sapatos Minha fortaleza Minha fortaleza é de um silêncio infame Bastando a si mesma, retendo o derrame A minha represa »
«Confessemos: isto não é bem recensão de um concerto. Este concerto é mais um leitmotif para expressarmos uma ou duas ressonâncias sensoriais e reflexivas sobre música contemporânea, do que propriamente matéria sobre a qual possamos permitir-nos opinar de forma particularmente informada sobre o seu conseguimento estético, quer das obras, quer interpretativo, até porque algumas das obras, para lá da exigência colocada à sua apreensão mais organizada, são primeira audição absoluta ou em Portugal. Nada de veleidades, portanto. Mas, efectivamente, não resistimos a tomá-lo como possível ilustração de algumas dinâmicas estéticas e sociológicas (porque o estético, infelizmente?, nunca se bastou) que atravessam a produção de alguma do que possamos designar como música erudita contemporânea (e logo as designações nos dizem bastante sobre a problemática condição da produção musical, em diversos planos), tal como não resistimos a reproduzir alguma leiga ressonância sensorial ao que se ouviu, já que também é para ela existir e ter voz que a entrada em concertos de tal natureza não é barrada aos não peritos da coisa. Composto de obras de compositores orientais ou de obras de compositores aí não nados inspiradas por elementos de culturas asiáticas, o programa tinha a virtude de combinar alguma diversidade estética, embora talvez sensorialmente menor do que à partida se poderia crer, o que de alguma forma talvez possa indicar que o forte impulso teórico que assiste a boa parte da produção musical contemporânea possa gerar certos efeitos de diluição das diferenciais linguagens às quais compositores em diversos contextos musicais/culturais possam acorrer para diferenciar as suas aproximações à produção musical. De Takemitsu, por exemplo, fica-nos essencialmente a emanação de um certo impressionismo, que efectivamente caracterizou parte das suas inclinações estéticas. Ainda que não implicando juízos quanto à eventual diferencialidade na estrutura das obras dessa influência orientalista, seria curioso comparar o efectivo “orientalismo” que a diversos níveis pudesse ou não pautar a especificidade dos compositores integrados neste festival: se se verificasse haver uma “troca” de influências entre compositores ocidentais e orientais, com cada lado a ser mais papista que o papa (perdoe-se o etnocentrismo) que acorda com o sol no outro lado, as ciências sociais teriam um dia profícuo. De qualquer forma, conseguir ultrapassar a obtusa fixação num exotismo estéril também é parte do cuidado que deve compreender um evento desta natureza. Dessa diversidade resulta igualmente uma característica curiosa, ligada à própria natureza do projecto que agregou uma diversidade de instrumentistas nesta Orchestrutopica. Sendo um projecto dedicado à divulgação de novas músicas no plano erudito de produção, é ilustrativo de algumas dinâmicas sociais que condicionam a produção musical contemporânea, quando se poderia julgar estar no tempo da maior liberdade expressiva possível, onde, de produção neoclássica a música concreta, tudo pode caber nas larguíssimas costas da música contemporânea (embora com diferenciações e hierarquias, explícitas ou como quem não quer a coisa, e suas devidas traduções institucionais). É que o carácter desafiador e não-convencional de parte da produção contemporânea se encontra em dialéctica com a submissão a formas de veicular a sua audição a algum público. Tal produção encontra-se, pois, algo condicionada a compor para agrupamentos, e suas especificidades instrumentais, à partida constituídos e vocacionados para veicular novas formas de expressão musical. A liberdade e a invenção teórica (que, considerandos os não poucos efeitos de escola, também poderia ser questionada) encontram-se pois condicionadas pelas especificidades das possibilidades sociais de comunicação da música produzida. Desse ponto de vista, a Orchestrutopica é visivelmente adequada para tal propósito dada a diversidade de valências instrumentais que agrega para poder, consoante as especificidades de cada obra, compor diferentes ensembles para diferentes exigências composicionais (permita-se o viés de saudarmos a presença até de um guitarrista, o, na altura em que o conhecemos, extremamente promissor Júlio Guerreiro, que agora só não pudemos confirmar ser o excelente Júlio Guerreiro porque, maldição da natureza do instrumento, a sua curta intervenção na peça de Gilbert não se pôde elevar acima da massa sonora de conjunto). O que tem o efeito particular de um concerto desta natureza implicar uma constante reconfiguração do cenário instrumental, implicando certa quebra no andamento da performance. Para não irmos mais longe, a abertura com as “Three Japanese Lyrics” de Stravinsky durou uns cinco minutos, após o que se seguiu logo uma espera para mudança no palco: é caso para dizer, nem deu para aquecer, e as peças diluíram-se na adaptação aos inícios das hostilidades. Outra característica muito interessante desta performance foi precisamente o seu carácter performativo. Parece-nos ser uma possível característica de parte da produção de música contemporânea que merece particular atenção. Tivemos, só neste concerto, vários casos em que, seja na convocação de diferentes recursos musicais (e musical aqui é no sentido de tudo o que produza som), seja na acção de produção sonora, se manifesta uma postura de interpelação nova à audição e colocação do público no espaço do concerto, que se pode muito bem caracterizar como valência de sedução para novas linguagens musicais que, se instaladas no mesmo cariz estático que caracteriza a produção e comunicação de música clássica (em sentido amplo), e acolitadas somente na novidade dissonante da sua gramática, jogam xadrez com o autismo musical, e tornam a produção e fruição musical áreas de exclusão mais fortes do acesso cultural. Os exemplos: na peça de Gilbert, temos o solista em flautas a dar um gira pela plateia e pelo palco, fazendo circular o som em diversos pontos de difusão, num contínuo teatral de diferenciação espacializada da recepção sonora, tornando praticamente cada ouvinte um ponto único de audição; na peça de Côrte-Real, o recurso a recitantes verificou-se uma opção extremamente feliz pelo contraste bem conseguido entre as linguagens (inglês e francês, e grego, em gravação, declinando escritos de Kavafis) e as impressões sensoriais que a sua expressão não musical (no sentido estrito) oferecem (e como tal, são musicais, em sentido amplo – sendo notória a diferenciação entre o apelo racionalista que se cola à digressão pela memória “póstuma” da sensualidade vivida, em inglês; e o apelo sensualista, muitas vezes sussurrado, não à recordação mas à evocação da sensualidade feita carne (une) autre/fois, em francês, ora pois); também na peça de Côrte-Real, o recurso a certos apontamentos electrónicos soou já mais discutível, na medida em que, exceptuando quando parecem emanações de um disco dos Cosmic Jokers em dia de menor trip, parecem surgir a espaços não como complemento identificável de produção de outros sons, mas quase como substituto de valências instrumentais que o ensemble não comporta, de tal forma que por certos segundos nos podemos equivocar na natureza do som (mesmo que tal fosse a intenção, parece-nos que provaria um ponto de vista que se esgota no seu efeito, e contraria a natureza de um concerto – mas deixemos humildemente a coisa em aberto...); na segunda peça de Takemitsu, temos o final com o clarinetista que se desloca do palco para os bastidores e daí emite os últimos ecos distantes da peça, em belíssimo efeito; na peça de Isang Yun, tivemos a soprano a utilizar de forma plenamente convincente o seu recurso instrumental de forma bem mais ampla do que o registo lírico tradicional, amplitude essa indubitavelmente mais rica para transmitir o agónico conteúdo da peça emanado da memória purulenta do fascismo, o que faz questionar com muita eficácia os limites que qualquer fixação expressiva comporta. Inclusive, e já nos esquecíamos (porque não tem efeitos sonoros, mas é simbólico de algo), até a espaços temos António Carrilho, solista em flautas, a alçar a perna feito Ian Anderson dos Jethro Tull, durante as suas intervenções. Querem mais performático? Francamente, para estratégia comunicacional que consiga pela sua inovação a mais planos expandir as margens de recepção de músicas novas, aliciando pelo seu enriquecimento textural de apresentação musical o consumo e socialização de novas linguagens, parece-nos que se pode fazer bem pior e inconsequente. Infelizmente, por enquanto, era Dia da Música, e o auditório da Culturgest estava a um terço. Keep on trying, boys.»
A sociobiologia já é o que é (e é perigosa, não deixemos a imagem dos animais fofinhos e a facilidade universalista da explicação biológica para os males humanos distrair-nos das falácias lógicas). Agora a sociobiologia de café, não há pachorra. Anda para aí um anúncio cretino, da safra do vamos-vender-telemóveis-a-arengar-(arrotar-é-feio)-postas-de-pescada-muito-pseudo-very-profundas a aspergir-nos com a sabedoria da vida da efémera. “A efémera”. Que a efémera só vive um dia. Mas que a efémera não quer saber. Que a efémera curte o dia e tá andar. A vida é baril (a malta é jovem, se não nas pernas, no espírito, man), carpe diem pessoal, e comprem um telemóvel com um mês inteiro do vosso salário (que são 30 dias, pessoal, vivam cada um deles intensamente no duro), porque para aproveitar a vida precisam absolutamente (não tinham reparado?) que o vosso patrão possa ver ao telemóvel a vossa fuça esparramada no travesseiro quando já deviam estar no escritório. Não escavaquemos inutilmente as absurdidades múltiplas. A efémera, to put it shortly, “faz carpe diem”, PORQUE É ESSE O SEU PRAZO DE VIDA!! A efémera, pessoal, não tem que se preocupar com empregos, socialização, empréstimos, ética e moral, famílias, relações sociais, doenças venéreas, efeitos secundários, burocracias e instituições, circunscrições e exclusões. Já NÃO SUPORTO que me venham dizer para viver a vida dia a dia. A nossa sociedade INTEIRA está erigida sobre o pressuposto de que a vida não dura um dia, dura muitos, quem sabe demasiados, pressuposto sobre o qual assenta a maioria das formas de auto-regulação pessoal que nos leva a não levar o querido livre-arbítrio às suas potencialidades trágicas como espetar este monitor na cabeça de quem diz estas barbaridades absurdamente moralizantes («se a sua vida é uma merda, a culpa é provavelmente sua, you’re not seizing the day!» ARRRGHHH!!). Cavalheiros da sociobiologia de pechisbeque, se a vida humana se vivesse como a efémera, podem ter a certeza que no fim de cada dia os efémeros humanos não se esvaíam sozinhos, arrastavam outros com eles. Mas, e daí?, era só a "espécie" humana (e não há aspas suficientes para isto) a funcionar, não?... Se eu FOSSE a efémera, viveria como a efémera, e seria feliz, porque era efémero sem apelo ou restrição. Caso não tenham reparado, não é o caso.
(«pisses me off...», resmoneou, caso também não se tivesse reparado)
(Ocorre-me agora que se esta gente perdesse mais tempo a dar ouvidos ao Mr. “Felt” Lawrence nada disto acontecia.
«You almost wish you were dying It would be an excuse to really live»)
Iniciou-se ontem, ao seguimento desta senda, o doravante contínuo e inexorável afogamento dos escritos que começaram a configurar um espaço, este, uma persona, a que aqui debita um falar. Ontem, mais uma parte da sua existência começou a ser arquivada. Doravante, o seu remanescente respirar é por nova via relembrado da pertença de seus frutos aos registos do olvido. Ahh, arquivos... se fosseis tão somente metáfora, que não metonímia.
«Estranhamente, ainda que seja pouco pródigo em nomes sonantes, desprovido de massa crítica para tal, o jazz português, nos últimos anos, tem visto consolidar-se um punhado de estimulantes praticantes da arte, que no seu amadurecimento têm vindo a publicar uma série de discos assinaláveis. O facto da diminuta massa crítica apenas torna esse facto mais notável, e é confirmado pelo facto de os suspeitos do costume serem sempre os mesmos (passe a redundância), que vão rodando de disco para disco de (quase) cada um dos suspeitos (do costume...).
O trio de Carlos Barretto, com Mário Delgado e José Salgueiro (respectivamente: contrabaixo, guitarra eléctrica e bateria/percussões) tem-se afirmado como uma das formações imperativas da praça, que já vai conhecendo certa estabilidade: este é o terceiro, ou o segundo registo do trio, consoante contem o brilhante, belíssimo e injustiçado primeiro registo como “Suite da Terra” – e as continuidades desse registo com o seguinte, e bem recebido, “Silêncios”, tornam duvidosa a reprovação do primeiro, e aconselham a assumir os três na avaliação da progressão do trio.
Se do primeiro para o segundo, a intencionalidade inicial de agregar inspirações do universo sonoro da música tradicional portuguesa às dinâmicas jazzísticas se foi desvanecendo, mas ainda marcava parte do apelo evocativo das ambiências instrumentais, neste “Radio Song” estamos num plano outro, em que as angulosidades composicionais e sonoridades mais agrestes se impõem. De constatar, no entanto, que persiste o gosto por dinâmicas de sugestão sonora, mais afastadas do estrito virtuosismo clássico do jazz, sugerindo, inclusive (ó sacrilégio), uma achega até a planisférios mais psicadélicos, que perpetuam parte das dinâmicas de sugestividade sonora mais disseminada que se agregam à degustação plena deste esforço singular no nosso jazz, e que tem sido prosseguida, por exemplo, no projecto Filactera do guitarrista da casa, Mário Delgado (particularmente no agrupamento diminuto de bateria e teclados que o tem acompanhado mais recentemente ao vivo).
Inclusive, chega a propor uma agregação subtil de temas in mezzo del camin do disco (pois que os temas vão apropriadamente do “Searching” ao “Final Searching”), como se de uma suite se tratasse. Esta suite-faz-de-conta-que-o-não-é-não-nos-vão-chamar-progressivos, aliás, epitomiza nos seus cinco temas a diversidade sonora do álbum, desde o sincopadíssimo (já imagem de marca do trio) tema principal “Searching” (serão muitas audições para lhe caçar o ritmo...), a interlúdios de pura melodia, improvisação muito cool, arrancadas rock vindas do nada e para o nada reconduzidas, eflúvios psicadélicos e aberturas puramente free.
A contribuir para laivos dessa dinâmica mais free jazz, temos também a presença de prestígio de Louis Sclavis em algumas faixas, com os seus sopros em registo descompassado, não se esquivando, no entanto, a sustentar uníssonos dos excelentes temas, muito groovy, que, como habitual, o trio disponibiliza para a sua prestação musical, aqui, mais que nunca, com a sua composição a cargo do senhor que encabeça nominalmente a formação.
Se o trio é uma máquina mais que oleada, na integração requintada das sonoridades de cada contributo – e um trio, com esta instrumentação (Sclavis não veio preencher nenhum buraco, garantimos), ter um som tão pleno, é facto que só acarreta mais aprovação – e se a guitarra de Mário Delgado, pela própria sonoridade do instrumento, é o que dá a coloração mais óbvia à paleta sonora, não só essa guitarra é, pelas mãos do seu mestre, plena de sugestão e cambiantes que acrescem à estrita notação musical e improvisativa (do registo mais jazzy a um feeling de rock, passando por emanações de som galácticas), como os restantes elementos não se esgotam em sustentação de mid-section com os tradicionais espaços/tempos designados para improvisação. Barretto fazendo pleno uso das possibilidades do instrumento, técnicas e tímbricas (incluindo belíssimas secções tocadas com arco), e Salgueiro exibindo a sua prolixidade percussiva, não deixam os seus créditos mais que firmados por mãos alheias, sobressaindo em diversos registos e formas de exponenciação, tornando toda a performance de uma diversidade tímbrica, de registos instrumentais, e espacialidades dinâmicas insuspeita para, mais uma vez, formação tão reduzida. Lições que, repetimos, se se agregam à devoção jazzística, bebem subtilmente de outras fontes de inspiração sonora que conseguem enriquecer, sem desvirtuar, toda a empresa de um disco de jazz (tanto mais assinalável quanto essa é argolada das mais recorrentes e fáceis de cometer). Proeza apetitosa e promissora.
Este trio constituiu-se como uma pedra fundamental e doravante imprescindível para a diversidade e riqueza do baixinho, mas potencialmente surpreendente e bem esgalhado, edifício do jazz português, a contribuir para que ouvir o produto nacional não seja uma concessão patrioteira a sonoridades insípidas de jazz xoninhas FM. A expansão que, a partir deste disco, tem aberto o trio para outros projectos, com mais ou outros instrumentistas, pode torná-lo ainda mais uma formação central para a ampliação do panorama estimulante que esta forma de arte seminal, resistente e renovadora pode conhecer neste país. Para os que reclamam da pátria, a precisar de coisas para se animar nestes tempos, olhem que podem arranjar bem pior – ponham os auscultadores e deixem lá a selecção nacional.»
É um cliché velho, mas sempre a mandar trancadas na frágil carroçaria da auto-estima, a incapacidade de dar a resposta certa, o comentário certo, na hora certa, a certa situação ou fala que nos atinge de surpresa o distraído orgulho humano. Presença de espírito, língua afiada, e costas previamente almofadas contra a acidez do mundo (o que pode ser perigoso...). Sendo que, princípio de precaução, o mais das vezes mais vale ruminar o resto do dia o que é que se poderia/deveria ter dito, do que assumir o ímpeto sanguíneo revanchista como a atitude certa por defeito. Digo isto, primeiro porque o ns (a culpa tecnicamente é dele), mo relembrou, ao empregar, in something completely different, uma das expressões mais brilhantes e históricas dessa presença de espírito: o grito às armas de Dylan, contra os próprios (equivocados) fãs, ao ver-se apupado e injuriado como "Judas" (de si próprio, curiosa condição) na segunda parte do concerto do Manchester Free Trade Hall (chamemos as coisas pelos nomes...), em 1966, ao ter trocado a imagem do cantautor solitário com a pastoril guitarra para uma full-fleged-electric-band: «play fucking loud!» Como convém, a uma certa rolling stone. Ou como alguém disse: não lhes dês o que eles querem, dá-lhes o que eles precisam (em certos momentos, faz sentido). E, em segundo lugar, porque isso lembrou-me outra tal resposta, menos “histórica”, mais humanamente terrífica, no «Le Trou» de Becker (assinalada há uns bons aninhos pelo inefável Bénard). Após toda a durée da história ser entretecida com os esforços de um grupo de prisioneiros para se evadirem da sua cela, e se irem enredando as formas de cumplicidade (to say the least...) nesse esforço múto, confirmamos no final a semente trágica da traição ter estado plantada, insidiosa, perversa, naquele microcosmos simbiótico de entreajuda humana (ironicamente, ou nem tanto, ora pois, numa prisão), quando se verifica que um deles (o recém-chegado), Gaspard, havia denunciado o plano, que é frustrado na noite da fuga. Controlados pelos guardas, despidos, encostados à parede, à passagem do incólume Gaspard para receber as benesses ignóbeis do seu acto, um dos prisioneiros profere a sentença mais cirúrgica, porque não há mais revolta, outra revolta, possível, apenas a fatal e pausada sentença, que reverta no possível da dignidade humana a inversão da recompensa terrena: «Pauvre Gaspard». Rien d’autre à dire.
Tão despida como a beleza indevida de um corpo desamparado na vulnerável limpidez involuntária da carne, é das canções onde o alçapão de musicar um poema, Poema, nunca rangeu sob o pé fincado do cantador. Coisa fora de moda, como o cantador, que pouco grava, persiste em portar bigode, e não tem a legião de culto que o evocador instrumento que acolhe na garganta, e gere com cabeça e coração, justificaria. O poema reza «Conta-me contos, ama...». A canção repousa aqui:
«A obra-prima clássica será provavelmente “A Cantar ao Sol” (isto na ausência escandalosa de uma reedição do “Olho de Fogo”). Porém, quando este outro disco vai parar à grafonola, mon couer balance (e não é, garanto, efeito da capa, a testemunhar os efeitos duradouros do furacão “Emmanuelle” no imaginário erótico português – está bem, “lavrar em teu peito”, mas não sejamos tão literais..., ainda para mais com o Janita em foto polaroid com cara de Belchior marialva na parte de trás). Bissexto, como a maioria das criativas criaturas daqui (acrescentemos Fausto e fica a conversa arrumada), poucos discos temos para nos regozijarmos com a voz reputada mais exponencial da masculina parte da música de inspiração tradicional portuguesa. E contudo, reputação bem redutora, se não lhe acoplam os méritos de um compositor de excepção, com um universo sonoro único e largamente inexplorado, em muitas das suas facetas, por qualquer outro criador deste burgo. E de facto, menor, e por isso redutor, parece ser o acolhimento que o autor recebe no panorama da música popular portuguesa, que talvez a sua recorrente ausência prolongada não justifique plenamente. Isto porque um só destes dois discos granjeia-lhe lugar no panteão, e é da mais elementar justiça relembrar o lugar que este disco merece na nossa memória colectiva, quando (sendo já uma sorte estar reeditado) anda maltratado nas promoções das grandes superfícies no meio das maçãs golden e dos êxitos dos Roxette (antes as golden...). Para além da herança do canto alentejano, sempre representado, mais ou menos (em geral mais) ortodoxamente, em alguma faixa, para efeito delicioso, com a voz de Janita a ornar a massa sonora dos coros, essa herança reclama as suas genealogias num mediterrâneo alargado às Áfricas da cercania, tão facilmente menosprezadas no lastro da nossa história como os mouros escorraçados. Em instrumentação e composição essas terras são resgatadas para o nosso presente sonoro de forma sem paralelo no panorama nacional. Mas o seu mérito não é o de exegeta histórico de ocultas heranças musicais. É o de (re)criador fremente, em canções de singular beleza, poesia e maturação, dos universos de que se reclama, ao ponto de incorporar o que assim deixa de carecer de decalque de aprendiz. A música de Janita É o que convoca, e mais, assim não o mimetizando. Para supremo exemplo dessas capacidades incorporadas ouça-se à incredulidade a destreza natural da assombrosa “A uma escrava que lhe abriu o sol” - num arranjo imaculado (e aquelas vozes, aqueles requebros...), que instala a melodia num requintado tapete persa com baixo à mistura. Para supremo exemplo de um compositor e cantor que tem no corpo tudo de quanto carece, a quietamente revolta melodia que encarna o poema de Pessoa “Conta-me contos, ama...”, como se a palavra não bastasse, transporta, a capella, para o mais íntimo da desilusão humana, o conforto fugaz de ser partilhada. Onde porventura o “A Cantar ao Sol” ganhará, será na maior consistência do material. Efectivamente, a adaptação da “Mulher da Erva” do Zeca Afonso soa tortuosa para ouvidos conhecedores do original... e em perfeição daquelas não é avisado mexer. A própria voz parece denunciar no início demasiado voluntarioso da canção o forçado que a homenagem, conquanto sincera no propósito, apresenta nos seus efeitos. Até o arranjo de José Peixoto soa meio trôpego face ao trabalho inspirado que apresenta nas outras faixas onde pôs o dedo sabido. Se há mais uma ou duas faixas que não fazem justiça ao excelso que no percurso das onze se nos pode deparar, o grosso do disco oscila entre o belíssimo e o superlativo, e ainda com a calorosa reminescência do saudoso Mário Viegas em récita na faixa “O poder”. Ainda que não tendo comprovado a performance que apresentou nos seus mais recentes trabalhos, num concerto de há dois ou três anos, a que tivemos o privilégio de assistir, estritamente a partir de percussão e a guitarra eléctrica do Mário Delgado (muita atenção a este cavalheiro), Janita conseguiu plenamente reconstruir o seu universo sonoro, que de outras âncoras pareceria a priori dependente, dando a ver que a relevância continuada deste senhor insubstituível, e falho de reconhecimento, clama de alto para que se voltem os ouvidos para o pouco que, esperemos que apenas por razões insuspeitas (os silêncios forçados de Amélia Muge, que tem, que saibamos, pelo menos um trabalho com vozes búlgaras, feito concerto há mais anos que os que queremos contar, por ver a luz do dia, deixam-nos em sobressalto sobre os motivos de qualquer silêncio), nos vai deixando ouvir do que só ele comporta lá dentro.»
Com relutância e inescapável desconsolo, prosseguirei esta senda insensata, tendo que prescindir de ter good old Henry’s loveable face a acolher-me, benfazeja, logo à entrada no blog, coisa que, nos dias que correm, estranho, inesperado e raro calor emanou. Talvez do que desliza perante os nossos olhos se deva imiscuir na consciência o que desse vislumbre permanente fica. Um tal Edward Estlin C., ou coisa parecida, pode-o ter definido assim:
«there’s never been quite such a fool who could fail pulling all the sky over him with one smile»
I hope beyond my eyes I’ve learnt my lesson. Porque do sentimento não se pode julgar. Mas em toda a sua pequena solicitação, não posso deixar de pensar que algo maior passava por aquele sorriso. Tanto maior quanto mais pequeno. Hmmm…(inquietação, nostálgico e esperançoso abatimento). Agora que a acção de prosseguir afunda as coisas no substrato deste espaço, esperemos que fertilize nos estratos insuspeitos, um pouco mais longe do olhar, o húmus of my foolish smile. I could use it.
Não me recordando das especificidades da minha inoculação com os episódios do MASH aquando da sua primeira difusão no país (sim, outra vez, a minha vida é só isto, é triste, amanhem-se), descobri hoje, ao pretender falar de personagens de ficção, que no final da 3ª série, com a saída do actor McLean Stevenson, a sua personagem, o coronel Henry Blake, morre na ficção (bem como, soube que o actor já é falecido). Fiquei deprimido. Não me interessa agora a estultícia de terem prosseguido uma série sem a sua mais bela (nos espaços em que podia respirar), interessante e complexa (e, logo, desaproveitada) personagem por uma infinidade de épocas. Até porque não me lembro desse futuro passado. Mas é espantoso (e é o seu aparente absurdo que me move) como, mesmo na frágil tessitura de um personagem que é possível erguer num formato relativamente estandardizado de sitcom, se pode conjurar na amálgama singular de um corpo, dos gestos e palavras que comporta, esse inefável sortilégio de os sonhos encorpados que de gente de carne se criam se tornarem outra ou mais carne que a gente. Não é questão o dilema do que salvar do incêndio da casa: a vida é condição de tudo mais, e a criação humana, da pequena comoção à grandiloquente circunscrição, sempre se renova e já demasiado nos ultrapassa, limitados mortais. Mas sei que, mesmo salva a vida de carne, das imagens de corpo e vida que me trespassa(ra)m, guardo perene na memória aquilo que perdi no fogo.
«O facto de raça ser um conceito nascido de uma selecção arbitrária de traços humanos para justificar assimetrias que historicamente serviram propósitos de dominação que aí também se ancoraram para se legitimar, é um dado histórico fundamental, mas não suficiente para desvanecer a persistência dos efeitos que a organização da vida social e da percepção em redor do conceito suscitam. Isto porque um conceito social não precisa de formas de validação científicas para operar: basta-lhe que haja gente a atribuir-lhe crença de validade, e pode perdurar para sempre, por muito que se clame que essa validade é nula. Daí que as estratégias de gente e grupos para contestar esses efeitos possam ser várias, contraditórias ou até conflituantes. Uma delas é assumir que as diferenças que esses conceitos erguem estão enraízadas em terra de séculos, separaram mundos sociais, e para ultrapassar as dominações que sustentam tais divisórias há que trabalhar com essa diferença demasiado sedimentada para poder ser ignorada e partir do zero. Que é como quem diria: se nos fizeram outros, pois sejamo-lo com orgulho. Se é a melhor estratégia, é matéria de discussão, que aqui não cabe. Mas qualquer estratégia pode ser mais valiosa se sempre for aliada a algum bom senso, que sempre faltou aos mais elaborados, rígidos, e geralmente lamentáveis, programas de tranformação social. E quando tal estratégia se corporiza, por exemplo, na beleza plácida mas decidida de um objecto artístico destes, algum crédito já arrebatou.
Tal intróito serve os propósitos de uma recensão musical, porque é de tal programa estético-político que se poderia dizer que emana este belo disco de uma senhora de seu nome Virgínia Rodrigues. Como diria um saudoso amigo brasileiro, branco(?) de tez por acaso, e senhor de uma versão particularmente sagaz e benigna daquela estratégia, “nós, os negros” temos agora nesta senhora um novo estandarte de valorização estética de uma condição social que, por mais que se quisesse, a história (não o leitmotif da biologia) não deixa pura e simplesmente deitar para trás das costas: a negritude.
Mais ainda, Virgínia Rodrigues tem o mérito de ser das poucas mulheres (outra assimetria biologizante) a quebrar com mérito próprio a dominação masculina dos mundos da música, a que a música brasileira não escapou. Mesmo no caso da louvada Elis, a condição de intérprete, que tolheu a maioria das vozes femininas, condiciona-as a escolhas de repertório e arranjos que exigem muitas vezes mais esforço que o humanamente compensatório para resgatar da desqualificação sonora o fio de uma interpretação vocal. E quanto mais não fosse, bastava um senhor chamado Chico de ascendência Buarque andar por essas águas para que os nossos afectos musicais rezem, sem que lhes fosse pedido, “nós, os homossexuais”... (não juramos conseguir cobrir todas as categorias de assimetria social até ao fim da recensão, mas faremos um esforço...)
Contudo, a senhora do dia logo à primeira audição se imiscuiu nas nossas dedicações, a força de pura voz, e de umas ajudas de primeira água no bom gosto. A primeira audição, no entanto, nem foi neste disco, mas nas divagações brasileiras de António Chaínho no seu “Lisboa-Rio”, de agradável memória, do qual a belíssima faixa original com madame Rodrigues era provavelmente o farol.
Ao pegarmos neste álbum de estreia, possibilitado pela “descoberta” de Caetano de que estava por aí, em cantos recolhido, este vozeirão, a já não tão frescota moçoila, mas muito viva, dá de si o que muitos não dão com toda a incauta e descomprometida juventude.
O disco abre a cappella, e para quem o não soubesse, com voz desta é difícil falhar, de tal modo parece talhada no ébano de uma dedicação singular, avessa a rebaldarias sonoras. Voz que doravante é a definição de cava, que ecoa (intencionalmente) vozes de negritude transplantada e renascida mais vezes que as que humanamente se julgaria possível, o seu timbre é todo um programa, e contam-se pelos dedos das mãos os timbres que nisso se lhe equiparem. E é todo esse programa que o disco cumpre, ilustrado no Sol Negro do título, das divinas cordas que ecoam nas nossas gargantas, e na especial arte de capa, toda em tons de negro, branco e dourado.
Contudo, a voz, por si, raramente se basta. E a conquista deste disco, se corre nesse regueiro, conta-se também pelo repertório e pelos arranjos. Todo o disco é um desfrute, garantido. Mas um punhado de faixas são inacreditáveis, em que aquela divina trindade vem ao de cima gloriosa.
Se o repertório foi escolhido a dedo e se reclama das mais diversas expressões, lamentações e exaltações da negritude, não só brasileira, como chegando a catrapiscar um espiritual norte-americano, os arranjos vão pela árdua mas compensadora via do less is more: são escolhidos a dedos os instrumentos para cada faixa, e usados na mais estrita necessidade expressiva. Pura lição de inteligência e sensibilidade na arte do arranjo, na sua exiguidade a evocar a regra e esquadro as movimentações de corpos num ocaso colectivo, que no seu oblíquo espaço concentram mais luz, outras luzes, que iluminam mais que a razão soube por muito tempo, espaço e cabeças, reconhecer. E se falámos de programa, e se daqui se pode destilar uma perspectiva política e epistémica para a condição da negritude, o seu destilar é de uma vibração estética superior que não se elabora prosélita para lá do que as palavras de um sentimento e vivência inspiram. As consequências do discurso fiquem para semiólogos e cientistas sociais, que existem para algo. No nosso discurso aqui segmentado, só beleza, mágoa e celebração epidérmica, contida e comovente nos interessa destacar.
Pela mão de Caetano, provavelmente, o disco acaba por agregar outras luminárias, interessantemente absolutamente dispensáveis neste contexto. Aliás, mal se dá por elas, o que foi outra escolha inteligente: é (não) ouvir Gilberto Gil e Djavan a fazer coro indistinto, que qualquer tamanco vocal faria, em “Terra Seca” (e só não pensamos que a sua participação é uma ironia escancarada, porque não queremos atribuir a ninguém tamanho descaramento ou malvadez).
Aparentemente, o prato forte está a cabo de Celso Fonseca, que deu mais que se poderia esperar nos arranjos, e a direcção artística nas mãos de Caetano. Sem fazer a partilha de créditos, souberam certamente dar todo o protagonismo à voz que decidiram sabiamente aqui servir. E a rarefacção instrumental que identifica timbricamente cada faixa criou o espaço perfeito, não de acomodação, mas de verdadeiro complemento a tal voz.
Mas genial, genial, são duas faixas. Se o resto prima pelo mesmo bom gosto e estratégia, a “Noite de Temporal” e o “Negrume da Noite” são os sóis negros por excelência deste disco. Ornadas de berimbau e percussões (escassíssimas), exclusivamente, são um portento expressivo, impressionantes como raras (por exemplo, duvidamos que algumas vezes as meras palmas das mãos tenham sido usadas de forma tão eficaz como no corte tímbrico que acentuam na segunda destas faixas – recurso que julgaríamos para sempre proscrito depois da sua prostituição na história da pior pop orelhuda, que também a há boa, claro...). A justeza dos passos tímbricos a pontuar e acompanhar a descrição de vidas feitas de augúrios tecidos no sal encarniçado abaixo da pele, de vidas a clamar o excelso da condição pela qual são desqualificadas (talvez o recurso último de emancipação discursiva), não cessam de surpreender a cada audição, plenas de teleporte mental para o auditor. Já de si belas canções, nestas versões valiam um disco cada uma.
O resto é menor, mas não é “material menor”, com belas canções, justamente desenhadas, desde Caetano ou Carlinhos Brown a clássicos de Luís Bonfá e Ary Barroso (este em explícita e impressionante denúncia - a consciência social tem às vezes mais faces, tempos e espaços do que o presente recorda), só destoando um pouco o inglês atabalhoado do espiritual “I wanna be ready”. Principalmente, “Adeus batucada” ainda nos estimula em particular, é comoção à brasileira, na qual nem na hora da despedida se abranda o passo que ritma a cadência do coração, com fanfarra de sopros contida no ponto. O resto, vai cumprindo na linha o passo seguríssimo deste disco singular, em que às belas recuperações da voz negra, em vários espaços e colorações (que convenhamos, negro e branco nunca foram cor de gente, nem antes do Technicolor), se juntam até canções de uns brancos jeitosos, que também os houve, uns poucos, com juízo, alguns dizendo, cantando, “nós, os negros”.»
À medida que vai progredindo a minha internacionalização subsidiária, duplicando no meu telemóvel os nomes dos meus contactos para lhes incorporar os sufixos das paragens onde agora se esplanam, parece-me que, de cada vez que o aparelho toca, faz ressoar, entrecortado, um riso escarninho.
«Robert Wyatt foi primeiramente um dos músicos centrais da chamada cena de Canterbury do progressivo inglês, mais jazzística e afastada dos sinfonismos que descambaram nos clichés que ainda hoje tornam o género vilipendiado a priori em muita esfera pública, tendo comparecido primeiro nos seminais Wilde Flowers, depois nos consagrados Soft Machine, posteriormente agrupado os singulares Matching Mole, e tendo exercido inúmeras colaborações com outros músicos que até hoje têm o bom gosto de o convocar. Contudo, essa parte do seu currículo, que parece ser já uma súmula, cumpriu-se efectivamente nem numa década. E após o momentum do progressivo na primeira metade dos anos 70, Robert Wyatt, ainda que com mais colaborações, mas escassa produção, configurou-se como uma das poucas figuras de autor dessa era que soube demonstrar quão funda era a raiz da sua música, mantendo-se em plena vitalidade criativa, irrestrita por classificações, nas décadas subsequentes, reconfirmada já no novo milénio. Vitalidade essa que, pela sua própria natureza, se fez da reconfiguração das premissas em que assenta a sua música. Talvez como uma espécie de Peter Hammill, sem a hiperactividade, e com o dramatismo afogado (a deixar antes ouvir uma bolha aqui e ali...).
Old Rottenhat, um dos exíguos títulos que lançou nos anos oitenta, como noutras décadas aliás (exprimindo talvez a sua velha inclinação para actividades mais produtivas, como dormir), pode suscitar estranheza na sua oferenda musical a quem espere deparar-se com algo de inspiração mais "classicamente" progressiva, mesmo na vertente heterodoxa dos agrupamentos a que pertenceu. De facto, a tessitura musical do álbum configura-se no movimento mais back to basics que Wyatt maioritariamente exprimiu nas obras subsequentes ao seu período de catarse rock bottom, como que exprimindo a partir da estrita circunscrição dos limites da sua própria pessoa a solidão constitutiva do seu discurso musical. Consequentemente, um combo de sintetizadores, esparsas percussões e voz, tudo a encargo do próprio, foi quanto careceu para ancorar as canções que por aqui pairam. Mais que suficiente, à luz leda destas melodias, para quem busque música no seu mais simples encantatório. Ao ouvir a voz de Wyatt (que para muitos, bons e sensíveis ouvintes, é já câmara de entrada para a comoção) esboçar no cristal imperfeito do seu ambíguo falsetto os vôos das suas envoltas melodias, um universo singelo de emoção contida se destila aos poucos para um deslumbramento insuspeito. Para todas as decadências anunciadas da melodia na música contemporânea, o simples fio que articula músicas como "Alliance" e "Mass-media" é a contra-prova cabal. Efectivamente, para os encantados, percussão e sintetizador quase seriam mero suporte descartável, não fosse a heterodoxa herança jazzística de Wyatt a soltar, como possibilidades de outro universo que daquelas melodias se poderia destacar, pequenos devaneios instrumentais em intermezzo ou codas de várias canções, que desconstroem, no mesmo movimento, a continuidade e o transtorno das melodias em que se entroncam, modulando de forma outra o que julgávamos, incautos, ser o seu tom perene. O melhor exemplo desse exemplo maior de singular escrita de canções é mesmo o literalmente esboço que termina o álbum, "P.L.A.", mais uma dedicatória à companheira (amorosa e produtiva) Alfreda Benge, em que de dois versos, uma sequência melódica, e o final desaguar instrumental, todo um espraiar afectivo se desvela, num pano de motivos infantis, que nos remetem, na desarmada ternura que instalam, para os desenhos naïf-mas-sei-o-que-estou-a-fazer da esposa “Alfie”, que aqui, como quase desde o início da vida musical a solo de Wyatt, se ocupa da desarmante arte de capa dos seus álbuns, produtos do verdadeiro casal-cooperativa. Consideremos, contudo, que mesmo estes esparsos recursos sonoros não deixam de ser explorados com a máxima sageza, conseguindo-se efeitos de densificação sonora insuspeitos para tal arsenal, com overdubs de voz e outros pequenos truques do ofício, como a construção em crescendo de “Garbzadeghi” demonstra.
E porque Wyatt se fez também homem de palavras (outra invulgaridade para os clichés do suposto género progressivo), as investidas políticas permanecem como substracto aguerrido em arguta elaboração, imprevisto em tão despida e delicada empresa. Investidas que, não traindo mas não decalcando as filiações assumidamente marxistas do autor, se orientam politicamente para a crítica de muitas margens do real, característica também de basta produção a solo de Wyatt. Aqui, para lá de críticas de classe (que de mais palavras não careceria senão o intróito de efectiva canção popular old rottenhat em “Gharbzadeghi”), mas também críticas às formatações comunicacionais dos mass-media, às dissimulações das desigualdades sociais nas (ditas) sociedades de consumo, aos fechamentos etnocêntricos do olhar e à desigual estrutura de poderes do mundo que organiza essa insularidade e soberba cultural, entre outros, é de relevar um tema que, neste canto também banhado pelo Atlântico, nos escapou na altura, certamente: uma referência a um certo território, deixado à mercê da anárquica lei internacional do mais forte, chamado Timor-Leste. Se olharmos para a data em que o Sr. Wyatt dele se lembrou, dir-se-ia que, até por aí, muita gente devia ter posto os ouvidos neste cavalheiro há muito tempo atrás.»